Ideologia
da percepção
Ricardo
Domeneck
Este
ensaio, escrito entre os dias 31 de dezembro de 2005 e 29 de janeiro
de 2006, foi publicado originalmente no número
16 da revista Inimigo Rumor naquele mesmo ano. O texto trazia o
subtítulo “Algumas considerações sobre a poesia
brasileira contemporânea”, que deixa de fazer parte do ensaio pelo
fato de que, nos últimos 8 anos, muitos poetas
brasileiros chegaram à cena, transformando sua aparência hegemônica
e influindo de maneira extremamente positiva
no debate e sobre estes questionamentos. Portanto, muitos aspectos
destas considerações historicizaram-se, e,
hoje, percebo o quanto destas mesmas considerações, ditas de uma
“poesia brasileira contemporânea” – no singular, estavam
condicionadas, elas mesmas, pelo fato do autor ser um poeta que se
formou na cidade de São Paulo. Várias pessoas
têm me pedido que o disponibilize na Rede, e hesitei por crer que
muito da situação se transformara. Disponibilizo-o
agora, portanto, com o alerta de que se trata de uma visão que
precisa ser contextualizada ao momento histórico
de sua composição, como o próprio texto pede que se faça, e com a
crença de que as poesias brasileiras contemporâneas
já começaram a responder a vários destes problemas. Sei também
que republicar um texto com críticas
a poéticas falaciosas como a de certos autores brasileiros
autodenominados neobarrocos, em pleno 2013, tem ares
de quem chuta cadáveres. É necessário também afirmar que, quanto
à discussão de uma certa crise da poesia no mundo
contemporâneo, que abre o texto, o autor queria, em vez das usuais
acusações contra a cultura de massas ou
problemas
educacionais e governamentais, entender quais as responsabilidades
que ele e seus colegas tinham na situação.
Este talvez fosse meu maior receio: por ter hoje uma percepção
muitíssimo mais positiva do cenário poético contemporâneo,
este texto está fora de sintonia, em alguns aspectos, às
considerações que eu hoje faria ao trabalho de meus
contemporâneos, pelo adentrar, em grande parte, da minha geração
em cena. Quanto ao tom de enfant terrible, perdoem:
o autor estava na casa dos 20 anos. Mas a fé na historicidade do
fazer poético e na conjunção entre ética e estética
expressa neste texto por parte do autor, no entanto, permanece a
mesma e inabalável.
Nota
do autor, 02 de fevereiro de 2013.
Ideologia
da percepção
(2006)
1-
O PROBLEMA
Tem-se
mencionado, com certa freqüência, a situação incongruente em que
se encontra a poesia
brasileira
contemporânea, gozando, de um lado, da expansão do número de
autores e possibilidades de
publicação
e divulgação, com várias editoras criando novas coleções
voltadas a poetas jovens, as
possibilidades
ilimitadas da divulgação pela rede eletrônica, a multiplicação
de revistas dedicadas à poesia,
e,
no entanto, por outro lado, o exíguo retorno por parte do público
leitor, o isolamento dos poetas em
pequenas
coteries formadas por outros poetas, gerando entre nós a situação
inédita, eu diria, de serem os
poetas,
hoje, quase todos "poetas de poetas", pois aparentemente
são os únicos a seguir dando atenção
específica
à produção de poesia. Mesmo nos cadernos culturais o espaço
dedicado à poesia, ou à sua
discussão,
diminui até quase desaparecer, e não se trata apenas daqueles mais
voltados à indústria cultural
e
à prosa que vende. A situação é por demais conhecida para que
tenhamos que nos ater por muito tempo
em
sua descrição. A poesia perdeu o "prestígio cultural"
que já teve, há não tanto tempo, e hoje parece
relegada
ao âmbito do bom gosto cristalizado, como muitas mães ainda esperam
que suas filhas tomem
aulas
de piano. Grande parte do público leitor conhece, é claro, as
criações mais importantes do último ou,
em
casos mais raros, dos dois últimos séculos, para afastar a angústia
cultural de qualquer sombra de
ignorância.
Muitos poderiam citar, não apenas aqueles trabalhos mais conhecidos
de Vinícius de Moraes,
criador
de alguns dos mais conhecidos e utilizados manuais de educação
sentimental deste território, mas
também
aqueles mais antológicos exemplos de escola (tanto pública quanto
poética), de Manuel Bandeira e
Oswald
de Andrade no âmbito brasileiro. Conheço vários casais que mantêm
O Amor Natural, de
Drummond,
na cabeceira da cama, para aqueles momentos no quarto enquanto a luz
permanece acesa. Na
Alemanha,
onde vivo, um leitor habitual conhece a "Todesfugue" de
Celan, já leu as Duineser Elegien de
Rilke,
não deixa de possuir algum livro de poetas "contemporâneos"
como Erich Fried ou Ernst Jandl. Pois,
veja
bem, não estou me referindo ao problema educacional sério em que
vivemos, num país em que o
número
de leitores de qualquer gênero é limitadíssimo. A situação é
mais ampla. O hábito de não ler poesia,
a
falta de vontade de sequer conhecê-la, cresce mesmo entre o público
que lê, sim, com freqüência e
atenção.
Não se trata apenas de uma falta geral de leitores. Simplesmente,
mais e mais deixa-se de ler
poesia.
Há
pouco tempo, o poeta Carlito Azevedo publicou no Jornal do Brasil um
artigo na forma de uma
interessante
conversa fictícia, em que se discute exatamente isso: por que não
se lê poesia? Uma das
respostas,
a que um dos interlocutores parece chegar, é que não se lê poesia
contemporânea porque ela
seria
difícil, e que ela teria se tornado difícil porque o desligamento
entre o público-leitor e a produção
poética
o teria impedido de instrumentalizar-se para compreendê-la. Assim,
neste jogo de causas e
conseqüências,
uma das conclusões seria o impasse de que não se lê poesia porque
ela é difícil e que ela é
difícil
porque não se lê poesia. Carlito Azevedo toca em pontos cruciais
para a discussão, como as
expectativas
do público-leitor quanto ao que um poeta deve produzir hoje em dia,
a confusão crítica em que
nos
encontramos, tomando padrões e respostas formais a contextos
passados, há muito tempo mortos,
para
responder a questões e dilemas do nosso contexto contemporâneo.
Voltaremos a este problema
adiante.
No entanto, acredito que a "dificuldade" das soluções
formais contemporâneas não possa ser o
início
ou núcleo do problema. Este desligamento entre leitores e poetas
parece ter-se iniciado mais cedo
para
que houvesse esta distância tão grande hoje. Não se pode chamar
exatamente de fáceis poetas do
primeiro
modernismo como Ezra Pound ou Vladimir Maiakovski, Guillaume
Apollinaire ou Gertrude Stein,
que
ainda hoje nos desafiam com suas criações, a quem a "dificuldade"
de sua poesia não impediu
liderarem
as transformações culturais de seu tempo, quando os poetas eram os
idealizadores e teóricos das
transformações
por que passava o mundo, mesmo que baseados nas pesquisas de outras
formas de arte,
como
a pintura e o cinema. Mesmo hoje, tanto no Brasil como na Alemanha,
conheço pessoas que não se
acanham
ante a dificuldade e complexidade da prosa de autores como Thomas
Pynchon ou Donald
Barthelme,
Robert Musil ou Peter Handke, Guimarães Rosa ou Hilda Hilst, as
mesmas pessoas que
conhecem
e acompanham a filmografia de artistas como Jean-Luc Godard e Andrei
Tarkovski, além de
poderem
citar e discutir artistas como Bruce Nauman ou Hélio Oiticica ao som
de Yoko Ono e Matmos. A
enumeração
talvez longa demais de artistas "difíceis" está aqui
apenas para demonstrar que não pode ser a
dificuldade
da poesia contemporânea que leva estas mesmas pessoas a dizerem com
muita naturalidade
que
"não lêem poesia", algumas indo mais longe e dizendo, sem
pudores culturais, que simplesmente "não
gostam
de poesia", que pode, sim, atingir grande complexidade em
autores como Affonso Ávila, Emmanuel
Hocquard
e Lyn Hejinian, por exemplo. Ou seja, não deve ser também a falta
de desafio na poesia que os
afasta.
Estou ciente de que talvez tenhamos aqui dois problemas diferentes,
sendo que a "dificuldade" da
poesia
contemporânea, no contexto internacional, realmente afasta certos
leitores; pessoas, no entanto, que
também
não se aventurariam nas obras dos artistas acima mencionados, e para
todos eles formulariam as
famosas
perguntas: "Mas isto é arte? Mas isto é música? Mas isto é
cinema?" e, por fim, a que nos ocupa:
"Mas
isto é poesia?". Assim, o que nos interessa nesta investigação
é a especial falta de prestígio cultural
em
que caiu a poesia, mesmo entre aqueles que aparentemente deveriam
estar capacitados para
compreendê-la,
ou possuir o desejo de acompanhá-la para o poderem. Não me parecerá
tragédia alguma
("though
it may look like a disaster"), se descobrirmos simplesmente que
a liderança e ângulo privilegiado de
pesquisa,
por transformações contextuais do mundo, tenham passado às artes
visuais, plásticas, e ao
cinema.
Em seu "Personism: A Manifesto", Frank O'Hara escreveu que
"Nobody should experience anything
they
don't need to, if they don't need poetry bully for them. I like the
movies too."
Mas
a poesia parece ter sido reduzida a uma espécie de bibelô cultural,
sofrendo a perda do papel
de
investigação sistemática e de processo epistemológico, e parece
retornar ao contexto de entretenimento
sofisticado,
prática de bom gosto, catequese moral. Quando uma prática
artística, que há tão pouco tempo
dispunha
de tamanha atenção para suas armas de combate, torna-se tão
ignorada e domesticada, é o
momento
para aqueles que a praticam perguntarem-se, sem vitimizações dos
que se crêem lançadores de
pérolas
a porcos, o sentido de seguir praticando-a da forma como vem sendo
praticada ou, até mesmo, se
devemos
seguir praticando-a. Na resposta para esta pergunta talvez tenhamos a
solução para o problema?
Pois,
ou descobriremos, citando Roland Barthes em seus Fragmentos de um
Discurso Amoroso, que a um
método
"assim lançado por sua própria força na deriva do inatual,
deportado para fora de toda
gregariedade,
nada mais lhe resta além de ser o lugar, por exíguo que seja, de
uma afirmação", ou que
chegou
a hora de secarmos o bico da pena e nos voltarmos para a prosa, ou o
cinema, ou as artes
plásticas.
O ser humano seguirá criando novas formas artísticas de
conhecimento, expressão, resistência,
contestação,
consolo, todas estas descrições do porquê artístico, dependendo
da ideologia e necessidades
do
discursante. Assim, não se trata de competição. Não me incomoda
particularmente que, a partir da
década
de 60, tenha recaído sobre artistas como Andy Warhol e Joseph Beuys,
ou Jean-Luc Godard e
Glauber
Rocha, o papel privilegiado de "inventar a realidade", mas
quando aos poetas tenha-se reservado
pouco
a pouco a mudez ou a escrita de frases para cartões de aniversário
e dia dos namorados, como
praticante
da atividade vejo-me impelido a entender o porquê.
Poderíamos
encontrar a resposta em outros momentos, no passado? Já passamos por
isso? As
artes
plásticas já ocuparam esta posição à dianteira das vanguardas em
outros momentos. Basta
pensarmos
na situação da poesia no início do século XX, e seríamos
tentados a crer que nos deparamos
com
uma situação, em alguns aspectos, parecida. A vanguarda estava em
pintores como Cézanne, Picasso,
Matisse,
Rousseau. Muito já foi escrito sobre a influência da pintura sobre
a poesia modernista, e já se
tornou
lugar-comum a proposta de que escritores como Ezra Pound, William
Carlos Williams e Gertrude
Stein
tentavam transportar e fazer na literatura uma "revolução"
que já se iniciara na pintura, na música.
Mas
isto não os impediu de estarem na crista do movimento. No Brasil,
poderíamos ver um paralelo na
precedência
de artistas como Victor Brecheret e Anita Malfatti, sem nos
esquecermos que foi contemplando
uma
pintura de Tarsila do Amaral que se iniciou a Antropofagia de Oswald
de Andrade e Raul Bopp. A
poesia,
porém, gozava ainda de grande prestígio cultural, e não havia nem
sombra do processo de
infantilização
do poeta que vemos na sociedade contemporânea. Assim como é também
sabido que, no
contexto
norte-americano da década de 50, poetas como Frank O'Hara e John
Ashbery, por exemplo,
tiveram
como estímulos as pesquisas formais de pintores como Jackson
Pollock, Larry Rivers, Willem de
Kooning.
No Brasil da mesma época, as pesquisas de Haroldo de Campos, Augusto
de Campos, Décio
Pignatari,
Affonso Ávila, seguiam de mãos dadas às de Waldemar Cordeiro,
Abraham Palatnik, Mary Vieira,
Luiz
Sacilotto, como as de Ferreira Gullar às de Lygia Clark e Hélio
Oiticica, os poetas mais uma vez
servindo
de teóricos e aglutinadores, antenas, filtros culturais. O problema
com que lidamos hoje seria, de
alguma
outra forma, novamente o descompasso da poesia em relação às artes
plásticas e cinema, por
seguir
princípios emprestados de um contexto já atrofiado? Falta de
qualidade? Argumenta-se que há
qualidade
e abundância de propostas, como declaram vários poetas e seguem
editando antologias que são
panoramas
amplos da produção contemporânea; mas, até que ponto uma
ideologia possivelmente fincada
em
princípios fora de sintonia com o mundo de hoje pode gerar poemas de
"qualidade" e que chamem a
atenção
do "outro"? A seguir, gostaria de analisar algumas das
características mais proeminentes da
produção
poética e movimentação crítica brasileiras neste momento
histórico, 2005/2006, e de que maneira
elas
se relacionariam a esta situação de desligamento entre poetas e
leitores, investigando possíveis
responsabilidades
dos próprios poetas contemporâneos brasileiros para o fato de que
hoje "no one listens to
poetry."
2
- O POETA INVESTIGA A PRÓPRIA MUDEZ À PROCURA DA MORDAÇA
a-
vale tudo
Já
discuti em outro lugar a aparente cristalização entre nós da noção
de que vivemos num período
em
que todas as formas históricas são viáveis ao poeta, caracterizado
pela possibilidade e liberdade no uso
de
qualquer uma delas, do soneto à beat utterance, o que vem geralmente
empacotado como "pluralidade
de
vozes", "polifonia de possibilidades", "inclusionismo
libertário", devidamente assim expressos para
manipular
a discussão e gerar a sensação de que discordar, ou atacar tamanho
ecumenismo crítico, não
passaria
de fascismo cultural, ou luta por hegemonia, espaço na imprensa.
Sim, abaixo a ditadura, dizem
todos.
É necessário coragem e estômago para ousar distoar do coro dos
contentes e expor a situação por
ângulos
menos benevolentes, disposto a ver na situação atual confusão e
covardia críticas, maneirismo
auto-complacente
ou, nas palavras de Augusto de Campos, o "ecletismo de segunda
categoria da poesia
contemporânea".
Não importa que os mesmos poetas e críticos a repetirem esta crença
em entrevistas e
artigos
pareçam, no entanto, razoavelmente convictos das escolhas
específicas que fazem diante da página
em
branco, das formas favoritas, número de versos, ritmo e disposição
gráfica de seus poemas, à escolha
dos
"companheiros de viagem" que privilegiam em suas críticas
e resenhas, beneficiando-se, porém, da
confusão
geral para camuflar as conotações ideológicas de tais escolhas.
Porque é inevitável que as
escolhas
formais de um poeta denunciem as distorções ideológicas de sua
invenção da realidade.
Mas
toda forma está ligada ao momento cultural em que surgiu, como
resposta às questões que
premiam
os poetas em seus contextos. Nas palavras de Peter Quartermain,
"every utterance is context
sensitive."
São notórios os estudos ligando Dante e sua Commédia ao contexto
cultural específico do século
em
que foi escrita, como ação refletindo e reagindo a aspectos
culturais do período, como disse, em que a
Máquina
do Mundo pairava sobre a cabeça dos homens; os que demonstram
Baudelaire como o poeta do
início
da industrialização, início da perda do sublime, do sagrado, do
mítico (que mais tarde nos traria à
chamada
"era da reprodutibilidade técnica"); Rimbaud, reagindo
diretamente às conseqüências imediatas de
tais
transformações; penso num pequeno livro brilhante como The Mechanic
Muse, de Hugh Kenner, em
que
o crítico norte-americano investiga como as mudanças econômicas e
científicas do início do século XX
moldavam
e geravam reações nas criações de T.S. Eliot, Ezra Pound, James
Joyce, William Faulkner,
chegando
a propor que certas práticas "inventadas" por Pound,
certas inovações tipográficas, visuais, por
exemplo,
não seriam possíveis sem a invenção da máquina de escrever,
chamando-nos a atenção para o
óbvio
menosprezado de que o fazer poético está intrinsecamente ligado a
todos os meandros da cultura em
que
se movimenta.
Todo
momento de vanguarda é um despertar para o que já não é mais, e
muito menos ter "olhos
novos
para o novo" que ter "olhos atuais para o atual",
mudando o adjetivo apenas para evitar uma
distorção
que já se tornou lei entre nós, em nossa percepção do que é
vanguarda e do que é invenção. "Die
Bedeutung
eines Wortes ist sein Gebrauch in der Sprache", como escreveu
Wittgenstein: o significado de
uma
palavra é seu uso na língua. Pois este "novo" de cada
momento histórico era resposta a necessidades
e
condicionamentos culturais, econômicos, sociais, científicos, todos
refletindo-se e debatendo-se dentro do
poema,
que não apenas os espelha, passivamente, mas reage a eles e também
condiciona nossa
percepção
destas mesmas transformações, sem podermos separar o quanto tais
poetas precipitavam estas
mudanças,
do quanto eles apenas as previam antes que se tornassem óbvias para
todos os outros. Mas
uma
mera e simples busca pelo novo, unida à crença na "composição
alephiana" de hoje – a crença na
chamada
trans-historicidade da literatura – leva poetas a buscarem
inovações baseadas em sua mera nãoocorrência
anterior
no mundo, ou pelo menos na língua portuguesa. Pois, repete-se à
exaustão aos novos
poetas
que eles "precisam encontrar sua própria voz", que eles
precisam "fazer o novo", e eles entregam-se
à
busca do que ainda não foi feito, e não do que precisa ser feito,
do que exige seu tempo, a língua, a
própria
cultura em que estão em atividade. E, se tal procedimento técnico
de Paul Celan, por exemplo,
jamais
foi usado por poetas brasileiros, ora, eles o usam, querendo garantir
assim sua "originalidade",
indiferentes
ou inconscientes de que necessidades biográficas e culturais levaram
Celan a tal procedimento;
e
multiplicam-se as descontextualizações de procedimentos de vários
poetas, em busca de uma voz. Cito o
caso
específico de Celan por ter sido moda apropriar-se das
desarticulações sintáticas e hermetismo do
poeta,
num ato de grande leviandade às necessidades da cultura e língua em
que Celan se movimentava,
desarticulações
levadas a cabo por ele jamais à guisa de originalidade, mas premidas
de tal forma por uma
desarticulação
interna da cultura total em que se agitava, que levaram o poeta à
grande dissolução nas
águas
do rio Sena. Jamais esperaria tal coerência existencial de quem está
à busca de uma "voz". Já sugeri
compararmos
estes procedimentos ao que se fazia no Brasil de então, onde
parecia-se buscar, em várias
artes,
"luz espaço, luz que se veste, / leve como uma rede, / e clara,
até quando preside / o cemitério e a
sede",
como nos versos de João Cabral de Melo Neto sobre Joaquim Cardozo,
poeta e engenheiro,
projetista
de concreto armado na Brasília a ser construída enquanto Paul Celan
publicava um livro como
Sprachgitter.
O MAKE IT NEW de Pound precisa vir hoje acompanhado de um MAKE IT
NECESSARY. Nas
palavras
de John Cage:
Why,
if everything is possible, do we concern ourselves with history (in
other words with a sense of what is
necessary
to be done at a particular time?) And I would answer, 'In order to
thicken the plot'. In this view,
then,
all those interpenetrations which seem at first glance to be hellish
- history, for instance, if we are
speaking
of experimental music - are to be espoused. One does not then make
just any experiment but does
what
must be done.
E
não creio que isto se aplique apenas à música experimental, mas
também à poesia ou qualquer
outra
experiência em arte. Assim, a história literária deveria
prover-nos não tanto fórmulas ou técnicas
quanto
métodos, não aprendendo ou copiando as soluções finais de outros
poetas (geralmente as
características
mais superficiais das invenções literárias), mas entendendo as
formas históricas como
soluções
apresentadas por artistas para problemas específicos de seu
contexto, não reproduzíveis, a não
ser
em laboratório, para aprendizagem, como sugeriu Mário Faustino. Ou,
se usadas novamente, com clara
consciência
de suas implicações no novo momento em que está sendo usada.
Estudando os contextos e
problemas
específicos dos nossos predecessores, poderíamos aprender como
lidar com nossos próprios
problemas,
e não simplesmente copiar suas soluções. Assim, eu insisto que o
desgaste das formas dá-se
menos
pela hipertrofia do uso que pela atrofia do contexto. Por extensão,
todas as formas históricas só
são
viáveis ao poeta contemporâneo se nossa época combinar em si todas
as características das épocas
em
que foram sendo criadas e acumuladas. Na década de 40, Erich
Auerbach escreveu em seu Mimesis:
A
realidade, dentro da qual os homens vivem, modifica-se, torna-se mais
ampla, mais rica em
possibilidades
e ilimitada; assim, ela também se modifica, no mesmo sentido, quando
se torna objeto da
representação,
e
comparando o mundo moral e mental de Shakespeare ao do mundo antigo,
considerando aquele,
contextualmente,
mais "movimentado, rico e dramático", escreveu que "a
própria base sobre a qual os
homens
se movimentam e os acontecimentos se desenrolam é mais insegura e
parece estar agitada por
comoções
internas; não há qualquer mundo fixo como pano de fundo, mas um
mundo que se reproduz
constantemente
a partir das mais diversas forças." Não poderíamos repetir a
citação, aumentando
radicalmente
tais comoções e falta de centro, desta vez comparando nosso tempo
com o de Shakespeare?
Pois
perdemos de tal forma este mundo fixo, que as próprias noções de
realidade e representação
começaram
a ser questionadas. Não muito tempo depois, aquele mesmo Paul Celan,
condicionado, ligado a
seu
tempo e cultura, escreveu que o "ainda-e-sempre do poema só
pode ser encontrado no poema daquele
que
não esquece que fala sob o ângulo de incidência de sua existência,
de sua criaturização."
Assim,
todo poeta carrega em si os condicionamentos de sua estrutura
individual, movendo-se num
contexto
coletivo, com problemas pessoais interligados a questões coletivas,
e o que cada um pode fazer é,
consciente
de suas condições e de como elas influem ideologicamente em seu
discurso, tentar sua
contribuição
pessoal, "what he alone must make", novamente nas palavras
de Cage. Mas, sintonizado em
sua
gregariedade, pois ninguém está à frente de seu tempo, já dissera
Gertrude Stein, outra context
sensitive
poet, ainda que alguns pareçam tentar a proeza de estarem aquém
dele. E cabe-nos, despertos
para
este condicionamento ideológico de nossa construção
coletiva/individual/coletiva/individual da tal de
realidade,
em fluxo e refluxo, mantê-la aberta aos olhos de todos, sabendo que
só posso contemplar o
mundo
com meus próprios olhos, conscientes, porém, desta "ideologia
da percepção". Expor o imposto,
sem
contribuir com os jogos de poder e dominação presentes também em
formas literárias. Susan Howe:
Whose
order is shut inside the structure of a sentence?
Mas
é especialmente conveniente, especialmente para poetas masculinos,
brancos e heterossexuais,
manterem-se
oblivious de tais condicionamentos, restando frequentemente aos
outros: mulheres, negros,
homossexuais,
sem opção, sensíveis a estes condicionamentos ideológicos das
formas, criarem, cada um à
sua
maneira, suas sabotagens internas, pois "no centro da própria
engrenagem / inventa(m) a contra-mola
que
resiste", até que todos despertem para seus contextos.(1)
B-
economia, concisão e o poema como objeto
A
poesia brasileira e a crítica de poesia das últimas décadas
instituíram como parâmetros críticos
básicos,
para o poema "de qualidade", aqueles que serviram de guia
para os mais importantes poetas do
pós-guerra:
economia, concisão, concretude, objetividade, parâmetros que se
tornaram praticamente
inquestionáveis
no discurso crítico contemporâneo no Brasil. No momento em que
surgiram com força na
discussão
poética brasileira, a década de 50 (ainda que sejam, na verdade,
parâmetros operantes desde os
primeiros
modernistas, como Pound), podemos perceber uma movimentação
cultural em bloco no país, pois
não
apenas poetas como João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos
esforçavam-se por implementar
tal
sensibilidade construtivista, como também vemos em vários âmbitos
da cultura brasileira o
direcionamento
para tal enxugamento e conceitualização, presente também na música
de João Gilberto, na
arquitetura
de Oscar Niemeyer, na pintura de Alfredo Volpi.(3)
Ainda
hoje, a proposição defendida e articulada no Brasil pelo grupo
Noigandres (tomada de Pound)
em
"poesia = dichten = condensare" é aceita como a natureza
do próprio poético. Entendo seu significado,
seu
uso ("O significado de uma palavra é seu uso na língua",
Wittgenstein) no contexto poético da década
de
50. Como é, além do mais, baseada no estudo e observação do
fenômeno poético ao longo dos tempos
e
em diversas tradições (via Pound, mais uma vez). Também é, no
entanto, condicionada por uma
expectativa
ideológica específica de organização do real, estrutura e
enunciado da própria estética
construtivista.
Proponho, no entanto, questionarmos sua aplicação universal como
descrição da natureza da
própria
poesia, pois creio encontrar, nos desdobramentos posteriores desta
tendência, um dos fatores de
alienação
contemporânea entre a poesia e o público.
Em
todos os âmbitos artísticos, nas artes plásticas, na música,
tem-se caminhado em direção à
noção
de processo e em abandono da noção de produto, em prol da
performance e em detrimento do
objeto,
em expansão e não em condensamento, ao aberto às explorações de
todos para evitar o que é
imposto
pelo acabamento de uma mente única. A prosa, em que a sua tendência
não parece privilegiar a
concentração
mas a expansão, criando macroestruturas que melhor permitem o
desenvolvimento, o
processo,
segue instrumentalizando leitores para sua crescente dificuldade
formal. Se a fórmula poesia =
dichten
= condensare for a própria base do poético, estaríamos num
impasse, em um mundo que privilegia
movimentos
que a poesia simplesmente não pode fornecer? Pois, não creio que as
noções de "forma fixa"
ou,
na expressão em inglês "closed form", apliquem-se apenas
ao soneto ou outras regras de versejar.
Nossa
busca por precisão, objetividade, não nos teria levado a produzir
objetos fechados para um mundo
em
constante movimento e expansão performática? A construção da
realidade operada por um poeta
(ideologia
da percepção), com material de construção de seu tempo e métodos
acumulados ao longo da
história,
levam-no portanto a moldar a realidade, não apenas sua própria
("...die Welt ist meine Welt", mais
uma
vez nas palavras de Wittgenstein: o mundo é meu mundo... (4)), mas
também por dominar, à sua
maneira,
um meio de comunicação, sua arte, que é ao mesmo tempo estrutura e
enunciado, lança ao
derredor
de seu presente, e especialmente ao futuro (devido ao período de
assimilação por parte de toda a
sociedade),
esta lente sobre os olhos dos atentos e mais tarde dos desatentos.
Assim, a partir da década de
50,
instituíram-se entre nós tais parâmetros, invocados pela
necessidade cultural de um momento
específico
de nossa cultura e elaborada pela personalidade também específica
de um grupo de artistas,
respondendo
à sua maneira a este contexto.
Diante
das provocações das novas mídias de comunicação (segundo Augusto
de Campos) e do
aparente
caminhar da linguagem em direção à simplificação formal e o
emergir de formas de linguagem
abreviadas
(segundo Max Bense), estes poetas, premidos por tais desdobramentos
culturais e sob a lente
de
sua própria personalidade (ideologia da percepção), responderam
com o que criam ser a maneira de
manter
a poesia na participação (com possibilidades tanto de influência
quanto de resistência) deste
processo
cultural. Ou seja, poetas que tinham os olhos atuais para o atual.
Mas a estes impulsos sociais,
econômicos
e científicos - CULTURAIS - (a iconização da linguagem, etc.)
impunha-se sua ideologia
pessoal
ordenadora, advinda de certas tendências do Alto Modernismo, o que
faz desta geração realmente
a
da transição entre este (da qual são a última prole) e o que vem
a seguir (da qual são ao mesmo tempo a
primeira
prole). Faz-se necessário enfatizar o papel das mentalidades
pessoais ordenadoras destes fatores
gerais
da cultura, para não cometermos o equívoco de naturalizar tais
escolhas formais como
desdobramentos
inevitáveis, ou incorrermos numa espécie de neodeterminismo,
perdendo de vista as
inescapáveis
distorções ideológicas de todo artista, que influencia
individualmente na percepção coletiva
desta
realidade.
No
caso dos poetas concretos, se estavam diante de fatos culturais (por
exemplo, as já citadas
provocações
das novas mídias de comunicação e a iconização da linguagem),
foram escolhas
condicionadas
por suas personalidades individuais proporem como "soluções
formais" a estes "problemas
exatos"
a visão de que uma "responsabilidade total perante a linguagem"
exigia a obliteração de uma
"poesia
de expressão, subjetiva e hedonista", e que só poderia haver
na poesia utilidade para a sociedade
na
criação do "poema-produto". Enquanto aos poetas do Alto
Modernismo sofrendo com a descentralização
do
mundo e o deslocamento do sujeito restou o luto poético do mundo
perdido (como na Waste Land de
Eliot,
com sua nostalgia por Roma, nas palavras do Paz de Blanco, e que, não
por coincidência, está
incluído
numa edição alemã de seus poemas mais longos com o nome de Suche
nach einer Mitte, ou
"busca
por um centro"), na década de 50 estes poetas vislumbraram na
construção lingüística uma
realidade
em que poderiam exercer o controle, sem as interferências sujas e
barulhentas do que chamaram
de
"o mundo dos eventos". Pois, se pertence realmente à
própria natureza da poesia a consciência total de
sua
própria materialidade, gradualmente crescente ao longo dos tempos
(sem insinuar aqui uma evolução
qualitativa),
sendo que o trabalho nos eixos vocal, visual e verbal pode ser
reconhecido mesmo na poesia
anterior
à concreta (o que permitiu aos poetas a releitura do passado e do
cânone), foi condicionada por
fatores
pessoais a escolha, no entanto, de uma poesia "primarily as
representation of a linguistic world
which
is independent of and not representative of an object extrinsic to
language..." (Max Bense).
Havia
nestes poetas, temos que frisar, a intuição genial de que num mundo
em que o sagrado e o
mítico
entraram em colapso, restava à arte (e era sua responsabilidade)
abandonar a utilização simbólica de
seu
próprio material e passar à sua utilização funcional, até mesmo
por questões de eficiência. Mas a
decisão
de resolver o conflito da representação da realidade surgido no
romantismo (na fórmula mundo X
linguagem)
pelo refúgio estrutural na linguagem como mundo em si (o concreto
"is nothing but itself") foi,
insisto,
escolha pessoal dos seus praticantes, na maioria homens, brancos,
heterossexuais. Os poetas
concretos,
tanto do grupo Noigandres no Brasil, como Eugen Gomringer na Europa,
iniciaram seus
experimentos
em 1952, um ano após a morte de Ludwig Wittgenstein, tendo como
eclosão oficial para o
mundo
a Exposição de Arte Concreta em São Paulo em 1956. No meio tempo,
publica-se na Inglaterra,
postumamente,
as Philosophische Untersuchungen em 1953. Podemos dizer, portanto,
que são
contemporâneas
as preocupações de todos estes pensadores da linguagem. Em seu
Wittgenstein's Ladder,
Marjorie
Perloff estuda desde a obra de uma poeta como Gertrude Stein, que
antes mesmo do início da
redação
da obra de Wittgenstein parecia inserir-se nesta ideologia da
percepção, a poetas como Charles
Bernstein,
já notoriamente influenciado pelas investigações do filósofo
judeu austríaco homossexual (cujo
pensamento
era condicionado não apenas por tais fatos biográficos como também
por sua dificuldade em
lidar
com tais fatos, chegando a demonstrações de self-hatred expresso
tanto como judeu quanto como
homossexual),
passando por um poeta como John Cage, iniciando suas atividades
criadoras
contemporaneamente
ao período em que começa a se fazer notar esta nova ordenação da
realidade.
Recorro
a este contexto, aparentemente alheio à discussão das escolhas e
conseqüências da poesia
concreta
no Brasil, para demonstrar escolhas alternativas sendo feitas em
outros ambientes, condicionadas
por
outras personalidades e necessidades pessoais.(5)
A
poética concreta propunha, portanto, o abandono da problemática do
sujeito que tanto ocupara
poetas
desde o Romantismo e, negando a crença no papel de expressão da
arte, focalizaram (em ênfase)
na
materialidade desta seu campo privilegiado de pesquisa, buscando uma
"arte geral da palavra", com
uma
"função de auto-reflexão"; e num mundo onde a metáfora
impossibilitou-se por amplas mudanças
culturais
(ainda que estes poetas vissem como causa principal a hipertrofia do
seu uso), radicalizaram as
sugestões
formais do processo na abolição do sistema simbólico arcaico de
interpretação e rebelaram-se,
nas
palavras de Rosmarie Waldrop, contra a transparência das palavras e
nossa tendência a lê-las, "look
through
them at their significance, their contents", não apenas
baseando-se na substantivação da língua,
com
significantes ancorados numa relação direta e precisa com
significados concretos, mas na concreção
do
próprio significante, arrancado do eixo de referencialidade e
trazido para o plano de relacionalidade. E
dos
dois lados do Atlântico propunham como soluções formais "an
arrangement and at the same time a
play-area
of fixed dimension", poemas fechados em si, únicos e
irreproduzíveis, com seus jogos constelares
de
significado pensados por seus "arranjadores" (o
poeta-designer), em regras de rigor e precisão.
O
problema principal, e a meu ver mais importante, que no entanto não
foi o foco de dissensão
quando
os concretos começaram a elaborar seu trabalho tanto teórico como
poético, reside na sua tentativa
de
independência lingüística do "mundo dos eventos" e
exílio na crença de que o concreto "is nothing but
itself."
Pois creio impossível o abandono completo da referencialidade, algo
intuído por poetas, por exemplo,
como
Frank O'Hara, quando tentou transportar para a poesia as pesquisas
formais de pintores como
Jackson
Pollock ou Jasper Johns, por esbarrar sempre no fato de que os
significantes, quer queiramos ou
não,
carregam invariavelmente os significados, que não podemos abstrair;
ou, no Brasil, por Ferreira Gullar,
que
chamou a atenção para um eixo esquecido na formulação
"verbivocovisual" da poesia, que ele
chamaria
de emocional, mas seria melhor compreendido como contextual,
condicionada por aquele ângulo
de
incidência de cada existência, de sua criaturização, nas palavras
de Celan, que Gullar carregou para a
sua
poesia, ao longo de sua obra, propondo que palavras como "água"
ou "pêra" sempre desencadeariam
processos
interpretativos diferentes para cada leitor, que aos significados
coletivos das palavras une os
agitados
em sua memória pessoal. Mas, infelizmente, no momento de denunciar
este fator estrutural da
poesia
concreta (que agia com indiferença a tais preocupações por
considerá-las as características daquela
poesia
de expressão, subjetiva e hedonista que queriam combater), Gullar o
fez em nome da defesa
justamente
da expressão e do subjetivo na arte, instaurando entre nós o
engessamento de dicotomias como
objetivo
X subjetivo, interno X externo. Esta relação íntima de significado
e significante, eu argumento,
poderia
sugerir, porém, a superação destas dicotomias, por nos mostrar
incapazes de simplesmente
separá-los,
e alguns poetas já nesta época começaram a entrar no terreno
movediço do acaso e da
aceitação
do tipo de sensibilidade que fez com que Wittgenstein escrevesse no
prefácio de suas
Investigações:
"... que meus pensamentos logo afrouxavam-se quando eu tentava,
contra sua inclinação
natural,
forçá-los a seguir numa direção. E que isto estava relacionado
claramente à própria natureza da
investigação."
(6)
Que,
à opção do rigor, da precisão, há também sensibilidades com
outras necessidades que as
levam
a perguntar: "Ist das unscharfe nicht oft gerade das, was wir
brauchen?", ou "O fora-de-foco não é
com
freqüência justamente do que precisamos?" (proposição # 71,
Investigações Filosóficas, L.
Wittgenstein),
e ao considerar as possibilidades (e necessidades) humanas reais de
"a linguistic world which
is
independent of and not representative of an object extrinsic to
language or of a world of events",
geralmente
penso em certo trecho da proposição 81 das Philosophische
Untersuchungen: "Als waere unsre
Logik
eine Logik, gleichsam fuer den luftleeren Raum", ou algo nos
termos de "Como se fosse nossa lógica,
por
assim dizer, uma lógica para o vácuo."(8)
Debatendo-se
com estas questões, esta batalha e exílio interpretativos entre
significado e
significante,
um poeta em outro contexto (nem o lusófono de Augusto de Campos e
Ferreira Gullar, nem o
germânico
de Max Bense e Ludwig Wittgenstein), o norte-americano Jack Spicer,
dialogando com o famoso
"The
Red Wheelbarrow" (9) de William Carlos Williams, escreveu
(substituindo o artigo definido "the" do
modernismo
em busca de centros pelo indefinido "a", mais próximo da
maior aceitação contemporânea do
indeterminado):(10)
A
RED WHEELBARROW (Jack Spicer)
Rest
and look at this goddamned wheelbarrow. Whatever
It
is. Dogs and crocodiles, sunlamps. Not
For
their significance.
For
their significant. For being human
The
signs escape you. You, who aren't very bright
Are
a signal for them. Not,
I
mean, the dogs and crocodiles, sunlamps. Not
Their
significance.
A
poesia concreta acaba por estruturar-se num tipo mais complexo de
closure, "a play-area of fixed
dimensions"
e "a reality in itself", mas ainda assim closure, por
tentar evitar a indeterminação e abertura
que,
aparentemente, entrariam em choque com a busca de precisão,
objetividade, rigor, gerando obras por
demais
controladas por seus criadores e controladoras, por sua vez, do
fenômeno interpretativo do leitor,
algumas
até mesmo carregando seus manuais de leitura. Em tudo isso, as
implicações políticas da
discussão,
usando palavras de Cage, "this situation of the subservience of
several to the directives of one."
Um
poeta como Haroldo de Campos, ao refugiar-se no "prismático"
do Un Coup de Dès de
Mallarmé
e no "expansivo galáctico" do Finnegans Wake de Joyce,
propôs-nos o caminho trilhado em suas
Galáxias,
caminhando da poesia icônica àquele que, aparentemente, seria o
último campo aonde poderia
levar
suas preocupações com a concreção lingüística: a experimentação
com a prosa. Suas pesquisas, em
suas
palavras, "se situam na fronteira entre prosa e poesia",
levando para a prosa o que Marjorie Perloff
(11)
chamou de "optical significance", ao discutir as Galáxias
como textos precursores de grande parte dos
experimentos
sendo feitos em prosa por poetas nas duas últimas décadas. O poeta,
porém, admite que há
no
livro "um gesto épico, narrativo" (terreno da prosa nos
últimos séculos, em que à poesia restou o território
lírico),
"mas a imagem acaba por prevalecer, a visão, a vocação para o
epifânico. Nesse sentido, o pólo
poético
termina por se impor ao projeto..."
Creio
que isto se dá porque Haroldo de Campos carrega para seu novo
experimento a ênfase na
semântica
para o processo de produção de significado e sua interpretação,
mais que na sintaxe, nisto
seguindo
o processo também de Joyce, com palavras que são conglomerados
semânticos em que, nas
palavras
de John Cage, contudo, a sintaxe permanece intacta, com seu
funcionamento sem
questionamento.
Ao escrever sobre o tema recorrente no livro, a viagem como livro e o
livro como viagem,
Haroldo
de Campos o chama de "vértebra semântica". Uma das
diferenças entre prosa e poesia é vista
geralmente
na maior ênfase por parte da poesia na estruturação paratática de
seu encadeamento
processual
de significado, usando a elipse e a justaposição dos enunciados
para a acumulação de sentido
na
interpretação, enquanto a prosa entregar-se-ia à estruturação
hipotática, visando na linearidade
discursiva
dos enunciados o desenvolvimento de sentido. Haroldo de Campos
percebeu no trabalho em
prosa
de certos artistas como James Joyce e Gertrude Stein a possibilidade
de superação desta dicotomia
ou
borrar desta fronteira. Em Gertrude Stein percebemos o mesmo
movimento paratático, num trabalho de
repetição
e encadeamento que me parece tomar a sintaxe como agente estrutural
essencial formador de
sentido
("O significado de uma palavra é seu uso na língua"),
baseando-se num vocabulário parco que
muitas
vezes consiste principalmente em conectivos, em que se torna
impossível a interpretação de um
significado
imanente, referencial, obrigando-nos a concentrarmo-nos na relação
entre os vocábulos. Em
James
Joyce vemos, com exceção de alguns momentos em que a consciência
do papel da sintaxe e o
espaço
na página parecem vir à tona, uma concentração na aglomeração
de significado via semântica, em
palavras
que são conglomerados lingüísticos, deixando a sintaxe
razoavelmente inquestionada, segundo o
John
Cage que teve seus textos em prosa (suas Lectures e Diaries), também
citados por Haroldo de
Campos
entre os que trabalharam com a consciência de materialidade de sua
língua.
Nas
Galáxias, Haroldo de Campos mantém sua concreção material,
escandindo suas linhas através
da
página, como se fossem longos versos, nem todos terminando
exatamente no mesmo ponto de quebrade-
linha,
com a aglutinação de significantes, que nem sempre atingem uma
fusão e criação sintética, como
nos
aglomerados de vocábulos "milumapáginas",
"umbigodomundolivro", "maroceano",
"babelbarroca",
"enrouxecenlouquece",
tomadas ao acaso na segunda edição da obra, recém-relançada, em
que os
vocábulos
reconhecíveis parecem manter a mesma função usual de quando não
aglutinados. Além disso,
ele
abole a pontuação, e toma em certos aspectos, como Gertrude Stein,
a repetição como método
composicional,
permitindo que um primeiro impulso vocabular gere os próximos por
contigüidade semântica,
fonética
ou visual (o verbivocovisual na prosa). Eis o trecho inicial da obra
(procurei manter o aspecto
gráfico
da edição que tenho em mãos, respeitando as quebras-de-linha que
aparecem ali):
e
começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e
arremesso
e
aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa
não
é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever
mil
páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para
começar
com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso
recomeço
por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é
o
futuro do escrever sobresecrevo sobrescravo em milumanoites
milumapáginas
ou
uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas
mesmam
ensimesmam onde o fim é o começo onde escrever sobre o escrever...
Aqui
vemos a performance lingüística de Haroldo de Campos
manifestando-se, entregando-se ao
condicionamento
temporal do desempenho, "e começo aqui", e sua composição
por contaminação
verbivocovisual,
este "começo" levando-nos por contigüidade a "meço",
visual e foneticamente incluído em
"começo",
além de semanticamente ligados às condições performáticas do
impulso lingüístico, pois o
condicionamento
temporal do que começa estende-se também espacialmente no que se
mede, e assim por
diante
em arremessos, como de dados mallarmaicos. Sem esquecer certos
elementos favoritos do autor,
como
a relação crítica com a tradição, mostrando-se neste fragmento
na viagem como tema odisséico, em
que
podemos pensar no Pound idealizador do ideograma poético tão
importante para os concretos,
iniciando
seus Cantos com a tradução da tradução do canto 11 da Odisséia,
"And then went down to the
ship,
/ Set keel to breakers, forth on the godly sea", e no “Canto
LXXIV”, em que escreve "Odysseus / the
name
of my family", assim como a referência a Sheherazade em suas
"milumanoites", a primeira narradora
performática
da história da literatura. Permeando tudo, o pendor metalingüístico
do autor em seu "escrever
sobre
escrever é / o futuro do escrever".
Nesta
edição, há um CD em que é possível ouvir as oralizações de
Haroldo de Campos para alguns
dos
textos, acompanhado em alguns por Alberto Marsicano na cítara, o que
aumenta a natureza de
versículo
e canto do trabalho. Mas também ajuda a perceber o que se intui na
leitura pois, em que pese a
estruturação
de repetições e aliterações, e apesar da abolição da pontuação,
mantem-se um fio condutor
em
muitos dos textos, e que, apesar de sua concretude unitária, parece
manter (como Cage crê ver mesmo
no
Finnegans Wake) a sintaxe razoavelmente intacta, fruto daquela
organização de sentido via semântica
de
que já falamos.(12)
Estudando
esta fronteira entre prosa e poesia, e como inserir-se nela, os
poetas Steve MacCaffery e
bp
nichol compreendem a prosa como "linear progression", que
pode ser "a way of thinking", e o livro de
prosa
um mecanismo projetado para conter de forma eficiente esta progressão
linear, fazendo da página
algo
a ser abstraído e até mesmo um obstáculo a ser vencido. Na poesia
concreta, em que o "espaço"
torna-se
agente estrutural, a página é a última coisa que se abstrairia,
pressupondo até mesmo em sua
concreção
a impossibilidade do poema longo (tendo em mente experimentos como o
“Blanco” de Octavio
Paz
ou “O Formigueiro” de Ferreira Gullar). Assim, ao vermos um poeta
concreto voltar-se para a "fronteiraprosa/
poesia",
pensaríamos que a página poderia tornar-se o primeiro muro a ser
questionado. A página
permanece,
porém, como o campo de jogo com dimensões fixas nestes experimentos
do poeta, cada texto
da
obra contido em uma página não-numerada, permitindo a
permutabilidade da leitura e, portanto, de sua
construção
de sentido. No mesmo ensaio "Haroldo de Campos's Galáxias and
After", Marjorie Perloff propõe
que
o poeta paulistano teria resolvido algumas destas questões ao
voltar-se para a prosa, terreno da linear
progression,
ao manter na estruturação de sua linguagem a ênfase na "optical
significance", e o poeta
mantém-se
na concreção de cada "versículo", como ele descreve a
unidade mínima composicional do seu
"épico-epifânico",
como pudemos observar na discussão do trabalho de H. de C. até
agora. Mas creio que
persiste
no trabalho, apesar da organização gráfica aparente de prosa, uma
estruturação, em seus
fundamentos,
poética. Proponho o exercício de rediagramar parte do trecho citado
acima:
e
começo aqui
e
meço aqui
este
começo
e
recomeço
e
remeço
e
arremesso
e
aqui me meço
quando
se vive sob a espécie da viagem
o
que importa não é a viagem
mas
o começo da
por
isso meço
por
isso começo
escrever
mil páginas
escrever
milumapáginas
para
acabar com a escritura
para
começar com a escritura
para
acabarcomeçar com a escritura
por
isso recomeço
por
isso arremeço
por
isso teço
O
exercício aparentemente arbitrário serve para demonstrar algo que o
próprio Haroldo de Campos
percebeu
ao escrever que em muitos momentos "o polo poético acaba por se
impor ao projeto", como em
outros
o andamento de prosa (mesmo em seu sentido de discurso oralizado)
mantém uma linha quase
discursiva
no texto. O que de forma nenhuma invalida sua experiência, uma das
poucas tentativas de
abolição
da fronteira entre prosa e poesia no Brasil, vendo, contudo, como a
ideologia construtivista seguiu
condicionando
os experimentos do poeta, pela sua tendência e preferência
particular por concentração, o
hábito
da "play-area of fixed dimension". Esta concentração no
processo gerador de sentido pela exploração
semântica
tem também outra conseqüência: ainda que o poeta tome algo da
idéia de "expansão estelar",
vendo
em seu texto um "big bang poético", eu creio que sua
experiência aproxima-se na verdade de uma
"expansão
celular", do poema que cresce por metástase.
Mas
teria sido mesmo a intenção do poeta borrar esta fronteira entre
prosa e poesia, quebrar esta
dicotomia?
Em suas palavras, ele situa seus textos na fronteira entre prosa e
poesia. Situar-se na fronteira
obriga
uma performance (seja caminhada ou dança, para pensarmos na
distinção de Valéry para a prosa e
a
poesia) a manter um pé em cada território, ou saltitar pela linha.
Insistência da fronteira em determinar o
início
do país. Eu creio que o barroco manifesta-se em Haroldo de Campos na
consciência e exposição
destas
oposições, numa linhagem mais quevediana que gongórica, (se
tomarmos aqui como certa a
declaração
[em verdade, questionável] do próprio autor de que seus textos são
barroquizantes) a mesma
que
permite Décio Pignatari chamar João Cabral de Melo Neto de poeta
barroco.
Haroldo
de Campos começou a escrever os "ensaios" das Galáxias em
1963 e os concluiu em
1976.
No período, as artes em geral parecem abandonar em bloco a closure e
a estruturação da obra de
arte
como "produto" e "objeto", e o poeta habilmente
insere-se novamente na mudança de sensibilidade
(mudança
de sensibilidade = instauração de novos parâmetros críticos
hegemônicos) e passa a produzir
textos
em que as dicotomias sendo borradas nas artes plásticas e mesmo na
música começam a ser
questionadas
também na literatura. A partir da década de 60, com o advento da
Pop Art, da performance, de
uma
process-oriented art, dos experimentos abolindo gêneros (colapso de
várias dicotomias) de Hélio
Oiticica,
Joseph Beuys, Lygia Clark, George Maciunas, Nan Goldin, Yoko Ono,
torna-se necessário rever as
mesmas
fronteiras entre gêneros como prosa e poesia, a possibilidade de
separação entre a obra e a
biografia
do artista gerando-a, o sublime da arte e o grotesco do corpo
fundindo-se, e o poeta paulistano
mostra-se
mais uma vez capaz e disposto a reconfigurar seu trabalho para as
necessidades ideológicas do
novo
momento. Ainda que muitos vejam intransigência e dogmatismo em seu
trabalho, Haroldo de Campos
(e
Augusto de Campos, neste aspecto) procurou demonstrar abertura para
compreender mesmo a obra de
artistas
que defendiam invenções da realidade (ideologia da percepção)
aparentemente conflituosas com a
sua,
como a de Mário Faustino (o praticante do verso em tempos de ciclo
histórico do verso encerrado);
Caetano
Veloso e tropicalistas (acaba de ser lançado no Brasil o estudo de
Gonzalo Aguilar [Poesia
Concreta
Brasileira. Edusp, 2005], em que, aparentemente, o crítico argentino
tenta demonstrar como a
poética
tropicalista, process-oriented, afasta-se da concretista); John Cage
com sua poesia-performance,
evitando
qualquer tipo de "fixed dimension" ("The end, and the
beginning, will be determined in
performance")
e escrevendo palestras com histórias unidas de forma não-planejada,
em busca de uma
complexidade
que "is more evident when it is not oversimplified by an idea of
relationship in one person's
mind",
em textos que Haroldo de Campos e Augusto de Campos traduziram e
divulgaram. Pois mesmo que
estes
artistas não compartilhassem de suas escolhas pessoais de
organização da realidade, havia neles a
responsabilidade
perante a linguagem, e a preocupação com sua materialidade.
É
óbvio que, como geralmente se dá em poetas obcecados por poderem,
trinta anos depois, dizer
que
tiveram uma "fase heróica", os concretos em muitos
momentos pareciam esforçar-se por instituir uma
oposição
poética que, devido à imaturidade crítica no país, foi aceita
facilmente pelos seus "inimigos", o que
impossibilitou
um verdadeiro debate, gerando trincheiras que ainda operam no país,
hoje, dos poetas
encastelados
em revistas grupais. Além de terem se apropriado de maneira muito
pessoal da obra de
autores
precedentes, muitas vezes enfatizando apenas o que lhes interessava e
criando lentes para a
leitura
de suas obras, até hoje praticamente incontornáveis em nossa
recepção crítica destas. É o caso de
Oswald
de Andrade, que hoje parece tentar respirar sob as lentes concretas e
ainda as tropicalistas, que
leram
nele o que lhes interessava e embasava suas próprias poéticas
(ideologia da percepção), ainda que
tenhamos
que agradecer-lhes a recuperação da obra. Como não é totalmente
desinteressada a leitura que
fizeram
dos mesmos Faustino, Veloso e Cage.
Nesta
nova configuração de parâmetros críticos hegemônicos, (onde
podemos, creio, traçar uma
possível
linha separando os modernistas do que quer que queiramos chamar o
momento seguinte)
chegando
ao poder na década de 60 e 70, eu diria que os experimentos mais
interessantes dos últimos
tempos,
em que a barreira entre vida e obra e a profusão de máscaras do eu
artístico atingiram tal projeção
(penso
em Tracey Emin montando seu quarto de dormir na Tate Gallery, ou
Adília Lopes expelindo ficçãovida
em
seus poemas, pois "Não há lugar para mim / num quadro de
Rubens"), predizem-se nos textos
galácticos
de Haroldo de Campos, nas interferências do mundo dos eventos (que
recebe visto de entrada
em
sua obra) e snapshots da própria biografia do poeta, que se aceita
como "ser histórico, situado no
'eldorido
feldorado latinoamargo'", como percebeu Benedito Nunes.
Para
poetas que surgem a seguir, no entanto, sem a mesma "capacidade
para o atual" e presos às
discussões
que surgem na dicotomia objetivo/subjetivo (cujo germe identifico na
relação crítica entre
concretos
e neoconcretos), tomando a fórmula "poesia = dichten =
condensare" at face value, finca-se a
apreciação
estética nos parâmetros de objetividade, concisão, economia como
axiomas críticos, geralmente
traduzidos
em concentração vocabular em substantivos, obliteração do que se
considera subjetivo, da
confissão
à escolha dos temas "sentimentais", que passam a ser em
geral o próprio fazer poético,
descrições
e encômios da obra de outros escritores (em sua concepção de
poesia-crítica), e a descrição de
paisagens
para a manutenção do poeta no mundo externo. Esta dicotomia acaba
por vingar-se dos poetas
contemporâneos
em suas obsessões imagéticas, e eu chamo a atenção para quantos
poemas
contemporâneos
brasileiros usam a imagem da "janela", da paisagem vista da
janela, da janela como
abstração,
como símbolo, janelas por todos os lados ilustrando e denunciando a
dicotomia interno/externo e
objetivo/subjetivo
da qual vários parecem até mesmo inconscientes. Assumem parâmetros
críticos
condicionados
por uma leitura de um grupo de poetas (na década de 50, 50 anos
atrás) como regras
básicas
para a poesia, e vemos o raquitismo de imaginação a que chegamos
hoje.
É
por isso que não se trata de qualidade o problema. Ainda que um
poeta aplique com maestria um
parâmetro
crítico obsoleto, descontextualizado, ele atingirá algo impecável
talvez, mas mudo. E é assim que
assistimos
em muitos momentos o público diante da poesia contemporânea: "tudo
muito bem, tudo muito
bom,
mas em que isso me diz respeito?" A simples reação do tédio.
E, no entanto, o poeta realmente
produziu
algo impecável. Mas num mundo sem qualquer ponto fixo, que vem
sofrendo abalos
descentralizadores
desde que se descobriu num canto desimportante do Universo,
apregoando a morte de
Deus
(e dela a proposta de Barthes da morte também do autor-divindade), e
como último desdobramento
chegando
hoje à descentralização do próprio sujeito, do deslocamento de
suas bases, como esperar que a
poesia
tal como vem sendo praticada possa participar do debate no mundo
contemporâneo, quando ela
simplesmente
dá sinais de ter suas costas voltadas para este mundo tal qual ele
hoje escolhe ser visto, ou é
construído
por outras artes para a coletividade?
Nos
últimos anos, tais parâmetros deformaram-se a tal ponto, que
criaram entre os poetas
brasileiros
as barricadas da mais ingênua noção de objetividade e
subjetividade. Talvez por se basearem
muito
mais no discurso sobre as práticas poéticas de homens como João
Cabral de Melo Neto ou Augusto
de
Campos (ainda que formuladas pelos próprios) e não em sua poesia em
si, passamos a receber no país
a
desova de uma ninhada de poemas de descrição de "paisagens
externas", uma avalanche de poemas
"anti-líricos"
em que poetas procuram, obliterando qualquer noção de sujeito,
entregar-nos discursos secos,
econômicos,
dependentes das dicotomias INTERNO X EXTERNO, OBJETIVO X SUBJETIVO,
para
seguirem
com suas noções simplistas de precisão e objetividade, em suas
descrições da "realidade"
"externa"
em visões que partem, no entanto, de um "eu" monolítico e
centralizador, condicionado e
contextual,
mas desonestamente camuflado para não implodir justamente a ilusão
de sua precisão,
objetividade.
Há poetas brasileiros escrevendo os mais subjetivos poemas de nosso
tempo, crentes, no
entanto,
de serem os mais objetivos entre seus pares.
Por
outro lado, há os poetas que, em nome da resistência a esta
obliteração do sujeito no mundo
contemporâneo,
acabam incorrendo justamente no erro que lhes criticam os "inimigos"
do outro lado da
trincheira,
e respondendo com uma noção de subjetividade que apenas reenforça
a dicotomia já criada
pelos
"objetivos", e, em suas "desperate attempts to
preserve the nobility of a subdued but still romantic ego
that
must have the world on its terms", acabam por fim caindo em
armadilhas como a exposta pelo mesmo
Charles
Altieri, autor da citação acima, em seu Self and Sensibility in
Contemporary American Poetry (1984):
The
danger in contemporary poetry, and in contemporary culture, is that
we see the ironic, depersonalizing
forces
so clearly that we flee into forms of extreme privacy that we hope
are as inviolate as they are
inarticulate.
But even this privacy then seems all too public a symptom of a
collective need for some richer
notion
of the personal.
Tal
conselho, diagnóstico, vem de um país onde as trincheiras do
subjetivo têm prevalecido, quando
no
Brasil o vitorioso tem sido o exército do objetivo, com armadilhas
não tão distantes. Por aqui, em busca
de
concisão, pratica-se tal edição elíptica e concentração
vocabular em substantivos que a obscuridade
atingida
mina a própria ambição de rigor, excluindo também do poema o
instrumental que permita ao leitor
acompanhar
o "processo de pensamento" do poeta, o que não é de
qualquer forma considerado importante
para
o autor, pois ele está dando ao mundo um objeto, um produto acabado
e rigoroso que o leitor possa
admirar
sem realmente possuir, mantendo muito segura a hierarquia entre
ambos. Aqui começaríamos a
tocar
nas implicações político-ideológicas da discussão, para a qual
não temos espaço aqui. Como não
temos
espaço para a investigação da tendência masculina e heterossexual
de concentrar na semântica o
processo
produtor de significado. E talvez não só a fé, mas a sobrevivência
da poesia para o homem
contemporâneo,
estejam em seu papel de reajuste das relações entre semântica e
sintaxe.
C-
outras trincheiras
Mas,
como objetivo X subjetivo não é a única dicotomia em jogo,
segue-se de mãos atadas. Pois, a
abstração
contextual a que parece ter-nos levado a leitura equivocada da
poética construtivista talvez seja
responsável
pela instauração de uma separação drástica entre vida e obra,
que tem se deformado nos
últimos
anos num beletrismo desenfreado na poesia contemporânea do país.
Pois, nesta descrição do
mundo
externo em busca de objetividade, os poetas entregam-se à
contemplação de obras de arte (do
passado,
diga-se logo), máscaras mortuárias, buscando evitar a impureza do
próprio mundo concreto,
mantendo
entre nós ainda outra trincheira entre o sublime e o grotesco, a
"poesia pura" e a "suja". Uma das
grandes
e excitantes características de um filme recente como A Professora
de Piano, de Michael Haneke
(baseado
no romance Die Klavierspielerin, de Elfriede Jelinek, que tem sido na
Áustria e na língua alemã
uma
das grandes acusadoras das gender-traps e distorções ideológicas
masculinas, camufladas de
parâmetros
universais) foi expor, com praticamente toda secreção corporal
implícita ou explicitamente, os
resultados
culturais da nossa separação esquizofrênica dos âmbitos sublimes
e grotescos da existência
humana,
em conseqüências e deformações que se arrastam desde as
transformações na Renascença, que
começou
a tecer esta grande rede de sublimações em que perdemos a saúde
grotesca da Idade Média.
É
claro que as reações a um contexto coletivo serão sempre
individuais. Penso em duas correntes
do
modernismo do início do século XX: a que sinaliza e debate-se
contra o fim de certas crenças (em seus
últimos
estertores) e uma outra, que parece sentir-se à vontade no mundo
como ele parece começar a
configurar-se.
Assim, o desespero de dúvidas e traumas de poetas como T.S. Eliot e
Fernando Pessoa,
sinalizando
o choque ainda no ar do mundo deslocado e descentralizado pelas
transformações científicas,
econômicas,
culturais dos últimos séculos, trauma of shifting contexts, que
gera a angústia oblíqua de J.
Alfred
Prufrock e do "contemplador da Tabacaria", poetas centrados
numa tradição e agarrados a noções de
núcleo
em um mundo que não mais as permitia. No entanto, outros decidiram
explorar o potencial poético
das
novas formas de comunicação, e talvez intuindo que a morte dos
valores tenha sido, na verdade, uma
transfiguração
deles, entregam-se a um mundo novo/atual, da forma que alguém como
Oswald de Andrade
propôe
que, ao invés de afundarmos com a Europa, aproveitássemo-nos dos
destroços do naufrágio para
seguir
em frente, e Gertrude Stein inspira-se nas linhas de montagem de
automóveis da Ford para sua
poesia,
de quem o mesmo Eliot (crendo em noções de evolução e declínio
cultural) teria dito que "if that is
the
future, then the future belongs to the barbarians."
Ou
como o luto carpido por Eliot nas certidões de óbito em The Waste
Land (1922), num mesmo
momento
em que William Carlos Williams dava-nos suas certidões de nascimento
iluminadas em Spring
and
All (1923). Relações distintas com o passado. No Brasil, muitos
poetas recorrem à autoridade da
chamada
tradição, intertextualidade que na verdade busca pilhar a aura de
importância cultural da poesia
de
outras épocas em que gozava de tal autoridade, esperando que, em sua
viagem no tempo, sobreviva um
pouco
desta "aura de autoridade" e socorra o poema importador. E
esta relação subserviente com a
tradição,
e os discursos desta tradição, engessam a poesia contemporânea ao
ponto do anquilosamento.
Em
um documentário sobre a poesia da década de 90, o crítico Augusto
Massi diz que "o problema sempre
foi
que nós não tínhamos uma tradição. Agora nós temos uma
tradição." E para que serve mesmo esta
tradição,
baseada em linhas evolutivas, tomando a construção do nacional como
destino e ápice históricos,
organizando-a
em um sistema fechado, que gera nem angústia, nem orgulho da
influência, mas a simples
obrigação
ideológica de filiação? Pois, se ela existir, em primeiro lugar,
ou existir tão-somente para a
paralisia,
seria melhor que nós jamais a conquistemos. E com ou sem tradição,
este país teve poetas como
Gregório
de Matos e Tomás António Gonzaga, assim como, por volta das últimas
duas décadas do século
XIX,
com as obras de Machado de Assis e Sousândrade, o país parece
começar a responder com criações
que
não necessitam separar-se e inserir-se em um sistema fechado
ideologicamente, estanque, num
protecionismo
de alfândega literária, alfândega que no entanto acaba
consolidando-se no trabalho crítico
dos
modernistas, herdada dos românticos. Abel Barros Baptista, num
ensaio que aborda e propôe algumas
destas
questões, escrito sobre o trabalho crítico de Antonio Candido
(vetor das preocupações que
remontam
aos românticos brasileiros e espraiam-se pelos modernistas), expôe
esta lente a que a crítica no
Brasil
parece ter que adaptar sua leitura, formada nesta ideologia (mal
consigo evitar o vocabulário
aprendido
com ela), inescapável a partir do momento em que passamos a discutir
a literatura no Brasil nos
termos
de formação e evolução, instaurados por esta mesma lente.
Como
fugir a ela se não se trata apenas de uma leitura crítica da
história literária, mas da própria
ideologia
que norteou a escrita no Brasil em seus parâmetros críticos
hegemônicos pelos dois últimos
séculos?
Como denunciar uma ideologia crítica que se confunde com a própria
literatura brasileira? Como
entender,
fora desta linhagem formativa da literatura no país, aquele momento
da criação e reflexão da arte
entre
nós, quando (talvez pela segunda vez após Machado de Assis), na
década de 50, o Brasil produzia
obras
internacionais e, ao mesmo tempo, impossíveis de se reproduzir em
qualquer outro país que não o
nosso,
nas obras de João Cabral de Melo Neto, Alfredo Volpi, João
Gilberto, Oscar Niemeyer, além da
instauração
do debate poético internacional veiculado pelo grupo Noigandres? Ou
mesmo esta minha
opinião
está condicionada por noções viciadas de brasilidade, herdadas dos
românticos/modernistas e
fundamentadas
teoricamente por Antonio Candido? Estas são algumas perguntas que o
ensaio de Barros
Baptista
nos propõe, ou que o ensaio sugeriu em mim após sua leitura.
Pois
esta visão evolutiva, hoje engessada, de tradição, parece ter
sobre nós o mesmo efeito que fez
com
que, ao longo de todo o século XX, as metrópoles das línguas
permanecessem paralisadas, presas, e
as
inovações viessem das periferias das línguas: compare-se a poesia
norte-americana à inglesa; onde o
modernismo
em língua espanhola começou; os locais de nascimento dos poetas
mais inovadores de língua
alemã;
e a poesia brasileira à portuguesa. Hoje, no entanto, talvez esteja
começando a mudar a situação, e
ao
pensar no beletrismo pseudo-culto da poesia brasileira dos últimos
20 anos, comparo-a à poesia de
portugueses
como Alberto Pimenta, Fernando Assis Pacheco e Adília Lopes. Tudo
isto está em jogo na
prática
beletrista da poesia contemporânea brasileira, talvez por sua
incapacidade de libertar-se das
amarras
ideológicas criadas pelo próprio impulso crítico
romântico/modernista, que parece querer obrigar
cada
novo poeta a inserir-se neste sistema, se quiser pertencer ao
sistema: a literatura brasileira,
incentivando
a profusão de neo-tendências do já referendado.
Reconheço
que muitos destes fatores surgem, também, de uma tentativa de
resistência a forças
extremamente
desumanizadoras na sociedade contemporânea, o consumismo
desenfreado, a redução e
subordinação
de todo funcionamento cultural às regras do mercado, a
desapropriação e pilhagem exercida
por
um sistema econômico que não permite ao humano sequer a manutenção
de seu próprio corpo. No
entanto,
questiono a eficácia desta forma de resistência. O barulho faz
parte da audição, já nos informaram
os
compositores contemporâneos, e os artistas plásticos, desde a
década de 60, começaram a trabalhar por
borrar
dicotomias como as que separam a "cultura sofisticada"
(como único campo digno para a
movimentação
de um artista) e a cultura de massas, chegando hoje ao processo de
borrar mesmo a
fronteira
entre Art & Fashion. Pois há outras formas de resistência
que a da negação, como propôe Theodor
Adorno
no ensaio "Lírica e Sociedade", ou Alfredo Bosi no ensaio
"Poesia Resistência": nem só o refúgio na
Idade
de Ouro, nem apenas a invocação da parúsia, mas também a inserção
de resistência dentro do
próprio
sistema. E exilar-se numa linguagem pura, não contaminada pelo
mercado, pela nova configuração
tecnológica
do mundo, tem gerado meros ouvidos moucos por parte do público.
Marjorie Perloff expôs da
seguinte
maneira as opções de resistência:
One
may, as do the bulk of 'creative writing' teachers and students in
workshops across the country, turn
one's
back on contemporary technology and write 'personal' poems in which
an individual 'I' responds to
sunsets
and spiders and moths flickering on windowpanes or remembers a
magical incident that occurred on
a
fishing trip with Father. Or one can take on the very public
discourses that seem so threatening and
explore
their poetic potential. (grifo meu)
Precisamos
rever nossas estratégias.
D-
ah! as metáforas
A
metáfora fundamentou-se na crença arcaica e religiosa daquilo que
Mircea Eliade descrevia como
a
"simpatia do Todo", a ligação cósmica conectando todas
as coisas no universo, que permitia a
metamorfose
de uma coisa em outra através dela; o que, em nossa sociedade
ocidental, encontrou ainda
arcabouço
na fé cristã da "comunhão dos santos" e no conceito de
figura que, no entanto, ao redirecionar a
"simpatia
do Todo" das coisas para os fatos, permitiu que o cristianismo
fosse a gênese do historicismo
contemporâneo.
Este desdobramento do cristianismo teve, assim, na sociedade
contemporânea, o efeito
contraditório
de o pôr em xeque, pois tal ênfase no fato, no histórico, terminou
por fim levando-nos à
descrença
no alcance transcendente da História. Utilizo-me da definição
contextual da metáfora, de sua
função
cultural, fiel à argumentação deste texto, em que não só o
significado de uma palavra é seu uso na
língua,
como a definição de uma prática é seu uso na cultura em que
exerce suas funções, sem buscar
definições
"universais" em qualquer poética. Com o colapso do mítico
no mundo moderno,13 e a
desconfiança
cada vez maior de qualquer forma de transcendência, a poesia, que se
baseava em grande
parte
na metáfora, entrou em crise. Vivemos, então, a falta de contexto,
a falta de retaguarda cultural,
aparentemente,
para a escrita da poesia. A metáfora, hoje, exige uma "suspension
of disbelief" de que o ser
humano
se torna cada vez menos capaz, ou simplesmente para o qual não tem
mais paciência.
Ainda
que muitos poetas tenham desenvolvido, através da metáfora, um
trabalho interessante de
desarticulação
daquilo que vejo como um logocentrismo exagerado e estéril na
poética brasileira nos
últimos
anos, esta vegetação metafórica criada está tão fora de compasso
com o resto da cultura
contemporânea
que o resultado são, mais uma vez, ouvidos moucos à poesia.
Novamente nos deparamos
com
o problema de uma qualidade poética atingida dentro de parâmetros
que simplesmente não interessam
à
sociedade contemporânea. E a insistência em métodos e práticas
viáveis e funcionais, mas
"desnecessários"
em seu contexto, tidos como arcaicos por uns, obsoletos por outros,
colabora com a
infantilização
da imagem do poeta no mundo de hoje. Pois certos setores do
público-leitor, na sociedade
contemporânea,
reservam e esperam do poeta determinadas atitudes, confundindo a
poesia com alguma
vaga
noção de poético, e buscando em poemas discursos que, ainda que
pudessem facilmente ser
"expressos"
em prosa, ficam mais "belos" se veiculados em linguagem
metafórica. Assim como opera-se o
retorno,
nos últimos anos, a versões do poema como operação de catequese,
demonstração sábia de
"experiência
de vida", "moral sublime", garantindo o "sucesso"
de alguém como Fabrício Carpinejar, o
exemplo
mais gritante. O impacto do poder da mídia sobre o discurso poético
parece, no Brasil, mostrar-se
apenas
na habilidade de certos autores em garantir seu lugarzinho na
história da literatura brasileira.
Há
cerca de uma década começou a se tornar mais visível e conhecido
no Brasil um grupo de
poetas
hispano-americanos (com brasileiros ligados a eles de várias
maneiras tangenciais), que hoje já
começa
a ser reconhecido como um dos mais importantes movimentos de
renovação das letras latinoamericanas,
não
só pela crescente recepção crítica, como por traduções e espaço
na imprensa: os
neobarrocos.
O termo remonta a Haroldo de Campos, reconhecido por eles como
precursor tanto na teoria,
em
ensaios da década de 50 como em trabalhos críticos mais conhecidos
como O Seqüestro do Barroco na
Formação
da Literatura Brasileira, quanto na prática poética – já
discutimos neste ensaio as Galáxias,
chamadas
pelo próprio autor de barroquizantes, que cita ainda a Ciropédia
como um trabalho que já
implicava
tais preocupações, ainda que as Galáxias aproximem-se muito mais
de experimentos literários do
âmbito
anglófono, mas teria sido difundido por Severo Sarduy em 1972. Além
de identificarem
características
em obras de várias épocas (daí o caráter "trans-histórico"
delas, segundo eles) que a partir
do
século XVII espanhol passaram a ser conhecidas como barrocas e que,
florescendo e transformando-se
na
América colonial, assumiriam seu caráter também transnacional.
No
século XX, José Lezama Lima seria um dos grandes representantes
destas características,
renascidas
com a Generación del 27 espanhola (trabalho crítico de Dámaso
Alonso e poético de gente
como
García Lorca), após séculos de ostracismo gerado por preconceitos
classicistas e realistas. No Brasil,
Oswald
de Andrade teria, sem saber, feito coro com Lezama Lima na defesa do
barroco como literatura das
Américas,
literatura da reconquista, antropofagia dando ao continente sua face
própria. Na Espanha, esta
releitura
do barroco significou de forma prática a recuperação da obra de
Luís de Góngora, que em suas
Soledades
praticara tal profusão metafórica, imagética, tal polifonia, que
por séculos silenciou-se sobre sua
obra,
tida como exemplo de mau gosto pelas sensibilidades neoclássicas ou
ligadas a noções mais
"enxutas"
do Barroco (para roubar descrição de Décio Pignatari em
documentário sobre João Cabral),
geralmente
representada pelo "conceitismo" de Francisco de Quevedo,
ainda que muitos críticos tenham já
demonstrado
como o conceitismo e o cultismo de Quevedo e Góngora não são
compartimentos estanques.
É
interessante lembrar que, na correspondência entre Octavio Paz e
Haroldo de Campos, logo em seu
início,
o poeta brasileiro, auto-denominado barroquizante, "repreende"
a poesia hispano-americana por sua
profusão
metafórica, sua ligação talvez "subserviente" ao
surrealismo, descrição que é, de certa forma,
rechaçada
pelo poeta mexicano. O surrealismo teria realmente se expandido na
América Espanhola de
forma
muito mais vigorosa que no Brasil, apesar das tentativas de poetas da
década de 60 de
demonstrarem
um veio surrealista subterrâneo correndo pela poesia brasileira. Eu
acredito que o sucesso e
poder
de penetração do surrealismo na América Espanhola deu-se,
justamente, por infiltrar-se numa língua
e
cultura que já tivera Luís de Góngora. No Brasil, apesar das
listagens de Haroldo de Campos, incluindo de
Gregório
de Matos (obviamente barroco, sem seu sentido histórico) a poetas do
século XIX, de românticos a
simbolistas,
de Sousândrade a Luís da Gama, passando por si mesmo e chegando a
Paulo Leminski, a
situação
é bastante diferente, eu creio. Além disso, demonstra mais uma vez
aquela atitude de releitura do
passado
a que me referi antes, menos como compreensão crítica que em busca
de embasamento para as
próprias
necessidades e respaldo para os próprios experimentos – atitude,
de qualquer forma, sincrônica e
inevitável
a qualquer poeta escrevendo no calor de sua hora.
Em
textos pronunciados em geral na Europa, Murilo Mendes identificou
Jorge de Lima como único
poeta
moderno brasileiro em quem o Barroco histórico tivera efeitos
visíveis. Apesar da acusação de geléia
geral,
parece ter corrido no Brasil um veio de claridade e "enxutez",
que de Antônio Vieira a Machado de
Assis,
de Sousândrade a João Cabral de Melo Neto, separados por Manuel
Bandeira e Carlos Drummond
de
Andrade, espraiou-se até nossos contemporâneos pomares às avessas,
mesmo que isto só seja visível,
em
grande parte hoje, precisamente pelo trabalho de revisão crítica
empreendido pelos concretos. Não
pretendo
ignorar exceções, como Augusto dos Anjos e Euclides da Cunha, mas
creio que poucos
discordariam
que a sensibilidade poética brasileira trilhou caminhos (principais)
diferentes da hispanoamericana
ao
longo dos tempos.
No
entanto, o Barroco histórico teria sido, segundo argumentos de Alejo
Carpentier, não apenas um
estilo
de época, mas uma atitude, uma postura poética. Qual seria esta
postura? Eu acredito que esta
postura
seria a apresentada por muitos poetas em diversas épocas e culturas,
mesmo que em nenhum
momento
lhes tenha sido entregue a marca registrada de barrocos, ou seja, a
de resistir às tentativas de
síntese
ou sublimação dos aspectos conflitantes do ser humano, sua
carnalidade e espiritualidade, que em
alguns
resolvia-se em dualismos (mais ou menos explícitos, como nos
próprios barrocos espanhóis, ou
atingindo
certa fusão jamais repetida nos metafísicos ingleses), em outros em
refúgios transcendentais do
sublime
(como em certos simbolistas, e penso aqui tanto em Cruz e Sousa como
em Stefan George), a torre
de
marfim, não política, mas que tenta colaborar com as defesas
culturais e psicológicas da denial of death,
que,
no entanto, em muitos mostrava-se na busca sempre do
não-apaziguamento, entregando-se à
impossibilidade
de pureza (como na contra-tradição moderna que remonta a Rimbaud,
creio, mais que a
Baudelaire).
Postura que, antes do século XVII, podemos já perceber no grotesco
da Idade Média (como
nos
estudos de Mikhail Bakhtin), ou depois dos barrocos do século XVII,
em gente que se levanta contra a
Literatura
(sempre ambiciosa de voltar ao mundo ordenado da Antiguidade segura e
fixa) como o já citado
Rimbaud
ou Lautréamont, que transformam de vez o ato da escrita em uma
tomada de posição diante das
opções
Arte X Vida (com seus dualismos, sua busca por pureza, aceitação do
estático) ou a vidarte (com
suas
miscigenações, impurezas, e sua preferência pelo extático). Ou
seja, uma postura extra-literária, que
pode
ser reconhecida em vários âmbitos culturais, advinda do
questionamento humano de sua própria
mortalidade,
o que nos mostra a falácia neobarroca em propor a
trans-historicidade de suas propostas.
O
próprio Octavio Paz argumenta em um ensaio, recolhido em Signos em
Rotação, que toda a
história
da literatura poderia ser dividida entre estes dois impulsos, o
clássico e o barroco, como outros
críticos
também a dividem entre o clássico e o romântico, fruto da obsessão
modernista por dicotomias que
eles
não buscavam apagar, ao trazer o grotesco ou o impuro para seu
trabalho mas, na verdade,
enfatizavam
pela crença na impossibilidade do sublime e puro a que
nostalgicamente dirigiam suas
lamentações.
E ao ler os textos críticos dos chamados poetas neobarrocos, entre
as idades de 60 e 40
anos,
por toda a América Latina, encontramos as defesas destas mesmas
características: o nãoapaziguamento
das
impurezas, a miscigenação de estilos, a quebra de dicotomias entre
até mesmo o
masculino
e o feminino, a inclusão das diferenças, ou seja, parâmetros em
nada exclusivos do barroco
espanhol
ou americano, sendo trabalhados por poetas em outros âmbitos, com
resultados diametralmente
opostos
algumas vezes. Sem falar na super-população de boas intenções no
inferno literário. O tom
laudatório
de muitos dos textos, com seu auto-referendar-se, trazendo para os
textos críticos já a própria
profusão
metafórica de sua poesia, o aproveitamento das vantagens de formarem
um grupo, ao mesmo
tempo
em que habilmente tentam rechaçar as limitações de serem um grupo,
a suposta generosidade
crítica
(eles se admiram mutuamente em números que podem chegar a 40, 50, 60
poetas em atividade)
podem
ser contagiantes, mas precisamos ver de que maneira isto se resolve
em sua prática poética. Este
inclusionismo
também leva-os a não apenas nomearem poetas mais velhos e mortos
como precursores,
mas
a incluí-los em suas antologias como parte deles, num ato que
considero desonesto em sua pilhagem
do
referendo crítico que estes poetas já conquistaram.
Sou,
quero deixar claro, tomado por grande simpatia por quaisquer poetas
que defendam tais
parâmetros
críticos, alguns deles os que defendo em propostas ao fim deste
texto. Foi com emoção que
descobri
o trabalho de Néstor Perlongher, que viveu e morreu em São Paulo, e
que tratou de algumas das
questões
que mais me ocupam nos últimos tempos, com seus questionamentos de
gender, sua obra que é
um
elegante ataque ao linear-discursivo, além do que já li ser chamado
de o "travestismo poético" de
Roberto
Echavarren, que em texto sobre a obra do próprio Perlongher
escreveu: "Ser preciso es ser
extravagante",
idéia bastante simpática para um poeta cuja obra circula num país
onde ser preciso é ser
raquítico.
Trabalhos com o camp, o kitsch, que são estudos impressionantes em
quebra de dicotomias
fossilizadas
na altura ou baixeza da arte. E, em minha própria busca pelo borrar
destas separações, entre a
idéia
do deserto moderno e a água das origens e do sagrado, não poderia
deixar de me identificar com um
poeta
que cunha o termo "neobarroso".
Mas
pretendo focalizar neste texto como tais parâmetros têm se
processado no Brasil, como estes
riscos
levados a cabo têm aportado aqui. Para isso, discutirei pouco os
pares hispano-americanos e mais os
desdobramentos
brasileiros do movimento.
De
que maneira então o grupo de poetas neobarrocos pratica esta
miscigenação de estilos, esta
quebra
de dicotomias, este ataque à descrição apaziguada de uma realidade
externa mesquinha? O poeta,
tradutor,
e talvez maior divulgador da poesia neobarroca entre os brasileiros é
Claudio Daniel, organizador
da
mais recente antologia do grupo publicada no Brasil, Jardim de
Camaleões. Escrevendo sobre o
neobarroco,
Daniel afirma que ele "se apropria de fórmulas anteriores,
remodelando-as, como argila, para
compor
o seu discurso; dá um novo sentido a estruturas consolidadas, como o
soneto, a novela, o romance,
perturbando-as."
Mais adiante, o poeta descreve ainda a busca por uma "linguagem
pura, polifonia de
vocábulos",
ainda que seus textos sejam "objetos de linguagem" (o que
eu chamaria de playing safe, para
agradar
a gregos e baianos). Em entrevista, falando sobre um trabalho em
prosa seu (que ele mesmo diz
não
diferenciar-se em processo de seu trabalho poético, aliás muitos
dos escritores do grupo transitam pela
fronteira
da prosa e da poesia, como o Haroldo de Campos tão discutido neste
texto), ele escreve que a
"escritura
faz um deliberado pastiche, sem qualquer compromisso com o realismo,
a verossimilhança ou a
historicidade..."
e seguindo na mesma entrevista, mais uma vez sobre o neobarroco, fala
de "adereços
rituais
de cerimônias mágicas", em "gozo bacante" e "delírio
visionário", defendendo "luxúria semântica,
metafórica"
e o ser "excessivo, multiforme, transbordante" e, por fim,
que a poesia para ele significa
"metáfora,
símbolo, imagens sonoras."
Há
vários elementos em operação aqui. Em primeiro lugar, acredito que
tal apropriação de "fórmulas
anteriores"
e este "pastiche" declarado estão ligados à fossilização
entre nós do que já discuti neste ensaio:
a
crença na possibilidade de utilização de qualquer forma histórica,
mesmo que "atualizada", inventada por
poetas
para problemas específicos de seus contextos ao longo dos séculos,
justamente por este descaso
(palavra
ideologicamente carregada por minha irritação, que portanto mudo
para despreocupação) com o
que
o próprio poeta chamou de historicidade. É esta mesma
despreocupação com a historicidade que leva
a
grande maioria a praticar tal profusão metafórica em seus textos,
ainda que mesmo entre eles se declare
que
"a metáfora está morta." Não me parece à toa que em
algumas páginas da internet eu tenha
encontrado
o termo associado a maneirismo. Também deixo ao leitor deste texto
julgar o que considero o
equívoco
ingênuo de associar e equivaler realismo, verossimilhança e
historicidade. Assim, neste turbilhão
de
metáforas e estilos emprestados a outros tempos, produzem seus
textos, que um deles, em uma
apresentação
sobre o movimento, a cada cinco linhas dizia serem "muito
difíceis." Os próprios poetas
parecem
intuir esta disritmia entre sua poesia fortemente carregada de
elementos míticos e religiosos (na
entrevista
já mencionada, Claudio Daniel insinua o papel do poeta como
sacerdote), num tempo que
desconfia
deles e parece tê-los posto em xeque, ou trata-se de uma honesta
busca por não separar suas
vidas
de suas obras, que os leva a enveredar por orientalismos,
experiências místicas com drogas como o
ahuasca
e o daime, e a povoar seus poemas de imagens exóticas e místicas,
preciosas, puras. Numa
entrevista,
o poeta peruano-argentino Reynaldo Jiménez defendeu as noções
arcaicas de poesia como
"cantar,
celebrar" e sua busca pelas "facetas comoventes do
incondicionado." Sim, o incondicionado, pois
no
mundo de hoje é só ali que eles ainda poderão encontrar a
"linguagem pura" e um lugar onde alguns
ainda
acreditem no papel heróico do "poeta como visionário."
Esta postura de "Sejamos Rimbaud" é muito
tentadora,
e eu deixo mais uma vez declarada, aqui, minha admiração por alguém
como Néstor Perlongher
que
realmente parece tê-la vivido, pagando (como é de praxe) com a
vida. O que não me parece ser o caso
de
alguns destes poetas que, apesar de vociferarem contra o
establishment literário, são publicados pelas
mais
prestigiosas editoras do país, dirigem coleções em outras, efetuam
liderança em outras facetas do
establishment
e, apesar de defenderem a quebra de dicotomias (operada realmente por
alguns dos
hispano-americanos),
têm no Brasil representantes que defendem pureza de linguagem e
separação da
poesia
da realidade aviltante, entregando-se a simbolismos e metáforas,
numa atitude tida por eles como
selvagem,
mas que é tão domesticada como certas outras "desperate
attempts to preserve the nobility of a
subdued
but still romantic ego that must have the world on its terms",
usando novamente as palavras de
Altieri.
Além de manterem as mesmas velhas dicotomias de pureza e impureza,
realidade e imaginação, que
faziam
as delícias e horrores de certos modernistas, e levam alguns destes
poetas no Brasil a prepararem
sua
cruzada iracunda contra os infiéis que se recusam a segui-los em
suas migrações a eras imaginárias. A
poética
de alguns deles depende da sobrevivência destas dicotomias. Em uma
entrevista a Armando
Alvarez
Bravo, o poeta José Lezama Lima, discorrendo sobre o caráter
religioso do processo de
significação
poética, responde da seguinte maneira à pergunta de A.A. Bravo:
A.A.B.
__ "Y el no católico, el ateo, qué significación encuentra?
De dónde parte?"
J.L.L.
__ "Bueno, pero usted me puede precisar el caso de um hombre que
no crea absolutamente en nada,
que
haga poesía."
Ainda
que ele esteja certo sobre a inexistência de poetas totalmente
céticos (e veja bem que A.A.
Bravo
pergunta-lhe sobre o não-católico, o ateu, e não de algum ser
hipoteticamente incapaz de crer em
qualquer
além), e quanto ao leitor? Ou mais uma vez estamos diante de uma
poesia para poetas? Seara
orgulhosa
de seres com carências melancólicas? Será por isso que Lezama Lima
depende da pregação do
retorno
às origens para que seu sistema poético baseado na metáfora não
caia por terra? Refugiar-se no
incondicionado
poético a única maneira de destruir a causalidade aristotélica? A
dicotomia resiste. Ele
escreve:
"Con ojos irritados se contemplan la causalidad y lo
incondicionado. Se contemplan irreconciliables
y
cierran filas em las dos riberas enemigas." E segue com sua
descrição da batalha numa argumentação
condicionada
por sua crença no incondicionado poético, expressa na formulação:
"Poética la voz, anónimo
el
rostro. Buena señal." No entanto, ele busca a reconciliação
do que dizia irreconciliável no próprio poema,
que
se faz signo, testemunho deste combate. Mas entre os brasileiros,
este combate não é sequer travado,
pois
a causalidade de uma realidade tida como simplesmente aviltante,
mesquinha, tanto a deles negada,
quanto
a de seus "inimigos" baseada em noções de realismo e
verossimilhança datados, é simplesmente
obliterada,
fazendo com que ela se instaure ainda com mais força no fenômeno de
sua exclusão da poesia
destes
autores, que não precisam ser expulsos de qualquer gregariedade,
pois já se auto-exilaram.
Assim,
ao defenderem parâmetros bastante amplos de prática poética (aos
quais me subscreveria),
por
sua descontextualização desta mesma prática poética
(contextualização que eu considero inescapável)
entregam-se,
não a buscar como estes parâmetros aplicar-se-iam ao trabalho com a
linguagem de seu
tempo
(como fizeram de Arthur Rimbaud ao onipresente Haroldo de Campos),
mas retornam a Góngora, a
Lautréamont,
a Celan, a Helder, numa atitude de desregramento que nada tem de
libertária mas, sim, como
muitos
aspectos do modernismo, elitista. Muitos de seus textos só não são
discursos lineares pela própria
natureza
elíptica da metáfora.
É
muito cedo para saber quais, entre estes 40, 50, 60 poetas em
atividade, permanecerão e terão
sido
capazes de escapar a estas armadilhas (ideologicamente armadas por
gente como eu).
E
não poderia terminar correndo o risco de criar a impressão de crer
que, entre os concretos e os
poetas
dos últimos 15 anos, nada foi feito por estas questões já
trabalhadas, por exemplo, à exaustão nas
artes
plásticas. Pois creio que alguns poetas brasileiros, entre a geração
de 50 e a minha, propuseram
soluções
geniais e estimulantes, como Orides Fontela, Torquato Neto, Roberto
Piva, Hilda Hilst ou Paulo
Leminski.
Fontela em seu sutil mas intenso trabalho no campo do processo
epistemológico regendo nossas
compreensões
da linguagem, nossos vícios simbólicos carregados para o semiótico,
as relações entre
significante
e significado, a intuição de que para talvez todos os seres dê-se
o que Clarice Lispector
reservou
para o ovo: "Ovo visto, ovo perdido"; Torquato entre os
tropicalistas, fazendo um dos maiores
assaltos
que este país já viu ao establishment acomodado nas alturas da
Cultura, levando adiante o
trabalho
do poeta como Kulturwissenschaftler; Piva, apesar do surrealismo
tardio de Paranóia, deu-nos a
coragem
contextual do pouco "comovente" condicionado em Piazzas e
Abra a Boca e Diga Ah!, além de
denunciar
imposições masculinas ao universal; Hilst negando qualquer forma de
transcendência que
implicasse
sublimação, em seus textos escritos por um corpo consciente; e
Leminski, o autor do Catatau,
mas
também da quebra de todas as dicotomias acima, em seus poemas ainda
pouco estudados.
Além
do trabalho de outros, tentando, buscando e atingindo resultados
interessantes no processo de
desmetaforização
de suas poéticas e, tomando como guia Wittgenstein, baseando-se na
metonímia e até
mesmo
na tautologia para a figuração ou transfiguração do mundo, e na
exposição das formas de
dominação
e distorção em qualquer ângulo ou perspectiva, individual e
coletiva.(14)
3-
ALGUMAS PROPOSTAS
*
questionar se não se encerrou o ciclo histórico da poesia como
"dichten, condensare", e se não
precisamos
implantar no Brasil novos parâmetros para a prática poética; penso
aqui nas performances do
John
Cage que escreveu: “I have nothing to say / and I am saying it /
and this is poetry”; de poetas como
Frank
O'Hara, que fizeram do ato poético da escritura uma crônica da sua
própria criação; ou John Ashbery,
que
parece ter levado para a poesia a indagação na proposição # 523
das Philosophische Untersuchungen
de
Wittgenstein:
<das
bild="" mir="" sagt="" selbst=""
sich=""> - moechte ich sagen. D.h., dass es mir etwas
sagt, besteht in seiner eigene
Struktur,
in seinen Formen und Farben. (Was hiesse es, wenn man sagte <das
mir="" musikalische="" sagt=""
selbst="" sich="" thema="">?(15) ---
"<a a="" diz-se-me="" href=""
imagem="" mesma="" si=""> - gostaria
de dizer. Isto é, o fato de ela me dizer
algo,
consiste em sua própria estrutura, em suas formas e cores. (O que
significaria se alguém dissesse <o a="" diz-se-me=""
mesmo="" musical="" si="" tema="">?",
proposição # 523, Investigações Filosóficas, L. Wittgenstein.
talvez
a proposição similar, de Jacques Roubaud, de que "A poesia não
é parafraseável" ou "A poesia diz o
que
ela diz dizendo-o"
;
*
instaurar uma resistência interna no sistema que parece querer
desumanizar-nos, guerrilha cultural de
sabotagem
de discursos, apropriando-se da própria linguagem econômica, da
moda, da ciência, para
explorá-las,
investigá-las e desarticulá-las por dentro, cautelosos, no entanto,
à admoestação proposta por
Umberto
Eco, em seu Opera Aperta, do perigo de, ao mimetizar as
transformações contextuais na arte, para
resistir-lhes,
o artista acabe por instituí-las, justificá-las e concretizá-las,
tendo que escolher entre este
perigo
e o que creio ser a ineficiência da resistência externa (com o
perigo de também acordar entre os
colaboracionistas);
propor a possibilidade de, num borrar último das separações entre
arte e vida, sublime e
grotesco,
objetivo e subjetivo, levar o homem a uma nova unidade realmente
libertária de inclusão total (ou
pelo
menos mais eficiente) de diferenças;
*
manter nossa atenção concentrada nas transformações contextuais
do mundo, para buscarmos entender
nossas
ações e reações dentro do grande sistema, conscientes de como a
forma escolhida trará sempre
nossas
distorções ideológicas, sem a indiferença de muitos artistas
brancos, homens e heterossexuais,
simplesmente
por terem a sua perspectiva como universal; assim, manter a
consciência constante e
honesta
de nossas escolhas formais condicionadas ideologicamente, pois a
realidade entra na poesia pela
tirania
impotente de qualquer eu regendo as regras d'o mundo ser
invariavelmente meu mundo; a única
saída
a responsabilidade de saber-se, como artista, manipulador e
catalisador do contexto coletivo;
observar
as intromissões do corpo em mulheres como Hilst, Waldrop, Hejinian,
Albiach, Mayröcker, Lopes;
as
intromissões do contexto exposto e as desarticulações do
discursivo e linear em homossexuais como
Ashbery,
O'Hara, Cage, Piva, Perlongher, Pasolini, Lorca, Spicer, espancando o
conceitual substantivo do
particular
camuflado de universal; assim como o questionamento do processo
civilizatório branco e muitas
vezes
eurocêntrico, obliterador de diferenças, impondo parâmetros
únicos, como o exercido (ethnopoetics)
por
poetas como Jerome Rothenberg ou Antônio Risério;
*
seguir organizando antologias da produção contemporânea, mas após
um primeiro momento de registro
de
panorama, incluindo todas as tendências, passar à fase de
selecionar, expondo as escolhas e o porquê
delas,
numa atitude de seleção coerente com esta ideologia exposta e
honesta, procurando o que é que
nosso
tempo precisa para ser exatamente o que já é; esperando que os
poetas abandonem o cômodo
estado
atual das coisas em que tudo parece valer e exponham também suas
escolhas, que eles obviamente
fazem
diante da folha em branco, já que nenhum deles pratica dentro de sua
obra todas as formas
históricas
e estilos que eles declaram viáveis aos poetas;
*
libertar-se por vez do hábito, que ainda rege nossas regras de bom
gosto, dispostos a arriscarmo-nos,
como
na pergunta de Ron Silliman em Sunset Debris: "Don't you see how
so-called good writing is a sort of
distortion,
positing dishonest limits on the real?";
*
numa possível nova configuração poética que abandone o condensar
pelo expandir, investigar o reverso
da
moeda da proposta de Poe e entender que, hoje, talvez estejamos
diante da impossibilidade do poema
curto;
*
trabalho crítico que se espelhe no que T.S. Eliot escreveu sobre
Ezra Pound, em sua posição privilegiada
na
poesia do início do século, por não só compreender o estado em
que se encontrava a poesia, mas
dispor-se
a saber o caminho que ela devia seguir;
*
na proposta de César Aira da literatura como "mera
generalización de singularidades", instaurar o
movimento
centrípeto de também uma "singularização de generalidades"
para sobrevivermos, talvez, na
relação
da biografia individual do poeta com sua coletividade histórica,
nela possivelmente o único meio real
de
expressão do poeta;
*
pautar a apropriação e aprendizagem de técnicas de poetas de
outros tempos, línguas e tradições pela
responsabilidade
de sua necessidade histórica em nosso tempo, língua e tradição,
sem a frivolidade do
novo
pelo novo para garantir simplesmente um espaço nos jornais da tarde
e nas revistas mensais;
*
entender finalmente que a própria escolha da forma de um poema não
apenas deveria relacionar-se com
seu
conteúdo, como Charles Olson e Robert Creeley propuseram, de forma
válida para a década de 50
americana,
pois isto seria de certa forma ainda nos mantermos na dicotomia que
as opõe: não mais apenas
FORM
IS NOTHING MORE THAN THE EXTENSION OF CONTENT, como nas palavras de
Creeley, mas
que
forma e conteúdo são uma única estrutura-enunciado, inseparável.
Proponho à minha geração a
deformação
ideológica de FORM IS NOTHING MORE THAN THE INTENTION OF CONTEXT. E
nossa
percepção
de que a materialidade da linguagem precisa ser acompanhada pela
consciência do
condicionamento
do seu suporte, até mesmo nas implicações político-ideológicas
de seus métodos de
distribuição
e divulgação. Bruce Andrews, um dos poetas ligados ao movimento
L=A=N=G=U=A=G=E da
poesia
americana na década de 70 e início da 80, expôs de tal maneira a
questão: "What's social here is not
some
separable content, but the Method of writing & of editing."
E segundo o Wittgenstein do Tractatus
Logico-Philosophicus,
"Ethics and aesthetics are one and the same."
Bebedouro,
SP, Brasil - 31/12/2005 a 29/01/2006
NOTAS
0
"O significado de uma palavra é seu uso na língua", na
proposição # 43 das Investigações Filosóficas,
Ludwig
Wittgenstein. (esta e outras citações no original alemão de
Wittgenstein foram traduzidas pelo autor
deste
texto, que gostaria de agradecer a Rodrigo Abdelmalack pelas
sugestões e discussão de certas
soluções)
1
Pretendo retomar e elaborar este tópico em um próximo ensaio, mas
num país como o Brasil, onde as
únicas
questões de GENDER parecem chegar pelas lentes pessoais de críticos
como Harold Bloom,
filtradas
por sua cruzada iracunda e justificadíssima contra o que ele chama
de "poética do ressentimento",
faz-se
necessário estabelecer e clarificar desde já certa postura, para
evitar mal-entendidos. Não me refiro
aqui
à gender-burrice reinante em universidades norte-americanas onde a
contextualização ideológica da
obra
de poetas tem levado a um revisionismo baseado na guetificação da
literatura. Argumento que
nenhuma
criação, ou leitura de tal criação literária, escapa a
condicionamentos ideológicos pessoais do
elaborador
do texto, relacionando-se com os condicionamentos coletivos de seu
tempo. Não se trata de
uma
ressurreição do determinismo, nem da proposta de abandonarmos a
leitura de certos poetas por serem
machistas,
fascistas ou naturalistas, assim como não proponho que tomemos a
leitura de outros por serem
gays,
negros, mulheres, ou peixes dourados. Ainda assim, insisto que estas
distorções ideológicas
influenciam
nossa elaboração e leitura do cânone e de qualquer poeta
estreante, que precisa inserir-se na
ideologia
crítica dominante ou trabalhar dentro/contra ela. Refiro o leitor às
discussões mais sérias de
GENDER
sendo travadas na Europa, nas obras de teóricos como Luce Irigaray,
Julia Kristeva, Judith Butler,
ou
mesmo em uma crítica literária norte-americana como Marjorie
Perloff, em seus estudos do trabalho
poético
de John Ashbery, Frank O' Hara ou John Cage, por exemplo.
2
Como sugestão de como nossa percepção da realidade mudou, em uma
nova instauração de parâmetros
críticos
hegemônicos, mesmo entre a década de 40 ainda modernista de
Auerbach e nosso momento
histórico,
penso em Hiding, um dos estudos mais criativos e estimulantes das
possibilidades criativas no
mundo
de hoje, o "pós-moderno", em que o crítico e pensador
Mark C. Taylor insinua que a sensação de
deformação
do "real" e vazio de "sentido" dão-se, hoje, não
pela crítica modernista do esvaziamento do
conteúdo,
mas pela proliferação desenfreada de continentes, e passa a propor
uma série de revisões para
que
possamos criar possibilidades de inserção e resistência na arte
hoje. Está na hora, também, de
pararmos
de expelir meros diagnósticos da dessacralização do mundo, da
perda do sublime, em "rehashes
of
Waste Lands", em que até Haroldo de Campos incorreu num poema
como "Finismundo: A Última
Viagem".
3
Não me refiro aqui a procedimentos de contextualização da arte que
a tomam como reflexo passivo de
movimentações
político-econômicas, como a proposição que liga a poesia concreta
ao desenvolvimentismo
no
contexto político de Juscelino Kubitschek ou "explica" a
poesia modernista como reflexo do tenentismo;
não
é a isso que chamo de "contextualização" do trabalho
artístico, tentando criar relações simplistas de
causa
e conseqüência cultural; mas buscar sensibilizar-se para a
interligação de todas as formas de
manifestação,
que nos leve a superar tais setas de direcionamento único e linear
no âmbito cultural.
4
"...o mundo é meu mundo." Tratado Lógico-Filosófico,
Ludwig Wittgenstein, discutindo a inserção do eu na
filosofia
e na relação realidade/linguagem, em que propôe a famosa "Os
limites da minha linguagem
significam
os limites do meu mundo."
5
Permiti-me usar estas alternativas para entender os desdobramentos e
funcionamentos da nossa poesia,
por
se tratar de um movimento internacional o da poesia concreta, uma das
mais bem sucedidas tentativas
de
criação de debate mundial e pesquisa coletiva de problemas que
transcendiam as fronteiras nacionais,
ainda
que em cada país se estivesse ciente das suas próprias limitações,
fazendo da poesia concreta não
só
precursora, nas palavras de Kenneth Goldsmith, de todos os adventos
culturais que nos trouxe a
internet,
como também da atual situação globalizada da economia e troca de
informações.
6
"... que meus pensamentos logo afrouxavam-se quando eu tentava,
contra sua inclinação natural, forçálos
a
seguir numa direção. E que isto estava relacionado claramente à
própria natureza da investigação."
Prefácio
às Investigações Filosóficas, Ludwig Wittgenstein.
7
"O fora-de-foco não é com freqüência justamente do que
precisamos?", proposição # 71, Investigações
Filosóficas,
L. Wittgenstein.
8
"Como se fosse nossa lógica, por assim dizer, uma lógica para
o vácuo." proposição # 81, Investigações
Filosóficas,
L. Wittgenstein.
9
O poema de Williams, publicado em Spring and All (1923), é:
THE
RED WHEELBARROW
so
much depends
upon
a
red wheel
barrow
glazed
with rain
water
beside
the white
chickens
Na
tradução de José Paulo Paes:
O
CARRINHO DE MÃO VERMELHO:
tanta
coisa depende
de
um
carrinho
de mão
vermelho
esmaltado
de água de
chuva
ao
lado das galinhas
brancas.
10
Uma Carriola Vermelha, trad. Ricardo Domeneck
Relaxe
e olhe esta maldita carriola. O que quer
Que
seja. Cães e crocodilos, refletores. Não
Por
seu significado.
Por
seu significante. Por ser humano
Os
signos elidem você. Você, nada brilhante,
É
um sinal para eles. Não,
Eu
assino, os cães e crocodilos, refletores. Não
Seu
significado.
11
As citações de Perloff, Waldrop, MacCaffery & nichol nesta
discussão da fronteira prosa/poesia, ao
analisar
as Galáxias de Haroldo de Campos, foram todas extraídas do ensaio
"Haroldo de Campos's
Galáxias
and After", de Marjorie Perloff.
12
Não quero minimizar a grande contribuição de Noigandres para a
"life of the problem" das relações
semântico-sintáticas
ao trazer o processo cognitivo e de interpretação do eixo de
referencialidade para o
plano
da relacionalidade, sua compreensão crítica do método ideogrâmico
de Pound, mas creio que a
mentalidade
do Alto Modernismo ainda vigora nas preocupações destes poetas, num
modernismo em suas
versões
nostálgicas da centralização e ambição de abarcar o mundo.
13
Eu creio, como Mircea Eliade sugere em muitos de seus livros, como O
Sagrado e o Profano, Imagem e
Símbolo,
O Mito do Eterno Retorno, que, mesmo no mundo moderno, formas do
sagrado sobrevivem, ainda
que
deformadas em meio às nossas manifestações sociais. Poderíamos
entender mesmo certas obras de
Andy
Warhol ou José Agrippino de Paula como demonstrações da nossa
necessidade (talvez vício) pela
divindade,
e sua permanência.
14
Assim como os artistas plásticos questionaram o condicionamento do
chamado cubo branco dos museus
e
galerias (num belo exemplo de denúncia de um artifício mascarado em
naturalidade) e até mesmo
filósofos,
que sempre pareceram acima de condicionamentos históricos (em sua
crença ingênua de
escreverem
numa linguagem ideal, clara, universal), hoje despertam para os
condicionamentos implícitos
em
questões estilísticas, necessitamos como poetas despertar para os
nossos próprios artifícios e
distorções.
Como os artistas plásticos que questionaram os suportes de
distribuição e exposição de sua
obra,
e pensadores como Charles Altieri e Bereg Lang, entre outros, que em
ensaios do volume The
Question
of Style in Philosophy and the Arts, citado por Michael Peters e
Nicholas Burbules em seu estudo
de
Wittgenstein, intuíram que "any choice of style - whether
conscious or not, whether defined in terms of the
individual
or by a particular tradition - will envolve a commitment to certain
metaphors and models of
representation."
15
"</o></a><a a="" diz-se-me=""
href="" imagem="" mesma="" si="">
- gostaria de dizer. Isto é, o fato de ela me dizer algo, consiste
em
sua
própria estrutura, em suas formas e cores. (O que significaria se
alguém dissesse <o a="" dizse-="" me=""
mesmo="" musical="" si="" tema="">?",
proposição # 523, Investigações Filosóficas, L. Wittgenstein.
Todo poema diz um "A
vida
se-me-é" e recusa-se a entender o que diz?
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NOTA
DO AUTOR (2006)
Gostaria
de agradecer aos amigos Pablo Gonçalo, Rodrigo Abdelmalack e Érico
Nogueira pela leitura do
texto,
suas sugestões e críticas, durante o processo de sua escritura.
Mais tarde, após a primeira versão
pronta,
socorreram-me as sugestões críticas e debate de Dirceu Villa, Paulo
Franchetti e Carlito Azevedo.
Quaisquer
incoerências ou erros permanecem pura e simplesmente por minha
teimosia. Esta é minha
tentativa
de contribuição ao debate poético no Brasil. Se permiti, em vários
momentos, que meu tom de voz
abandonasse
o comportado-profissional e diplomático-acadêmico, foi por ter-me
divertido imensamente com
sua
escrita, e com a leitura que fiz há tempos do ensaísmo de Ezra
Pound, que permitia que o calor da hora
e
sua paixão pela poesia tomassem conta de seu julgamento. Pois aqui
está o calor da hora de minha
preocupação
com o papel da poesia na sociedade contemporânea, além de minha
paixão por sua prática.
Por
fim, gostaria de dizer que este texto é dedicado a Marília
Garcia.</o></a></das></das>
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